sábado, setembro 03, 2005

Os descartáveis

Nem Bin Laden pensaria uma coisa dessas. Ou pensaria? E teria apelado para Alá, implorado, lembrando e repetindo: eles não assinaram o Protocolo de Kioto! eles não querem aderir ao Protocolo de Kioto! eles criticam e boicotam o Protocolo de Kioto! eles não assinaram, Alá! eles não assinaram!.

E Alá, com a fúria que só os deuses tem permissão para expressar, teria lançado o sopro da destruição sobre aquele país. E enquanto soprava, pensava: esse é pelo Iraque! esse é pelo Irã! e vai que sopra! Não, acho que Bin Laden não faria isso e nem Alá toparia essa missão. Sacrificar justo os americanos pobres, que nem votaram em Bush? Ou votaram? Ou Alá escreve certo por linhas tortas, escolhendo os justos, que são os sacrificáveis favoritos dessa vida besta, para expor ao mundo as feridas escondidas do império selvagem?

Vai saber. Agora, que a tragédia em Nova Orleans está servindo para conhecermos ou confirmarmos o que já desconfiávamos sobre o mercadão central americano, isso está. Existem americanos pobres! E eles são negros! E estão abandonados! E, para o governo, são descartáveis! São pobres, negros, abandonados, descartáveis. Ou seja, excluídos! Olhem só as fotos, se não se parecem conosco. Nova Orleans somos nós na cena. É o terceiro mundo no primeiro. Quem poderia imaginar isso? Da 5ª Avenida para a Rocinha. Nós já estamos lá.

E as trapalhadas de Bush? Estava conversando com Rutinha e lembrando do dia em que um avião caiu perto do aeroporto de Toronto. Foi no início de agosto e ela estava lá. Em 42 segundos, a tripulação e a equipe de apoio do aeroporto, a que conseguiu chegar perto do avião, retiraram os 309 passageiros de dentro da aeronave. Logo em seguida, o avião explodiu. Tudo bem, vamos dizer que exageramos ou que erramos na tradução e foram 4,2 minutos. Isso significa o quê? Que a cada 1,2 segundos um passageiro era retirado de dentro do avião. Os canadenses são feras! Durante 10 dias, o governo americano não conseguiu evacuar uma cidade menor do que Belo Horizonte. Uma cidade com pouco mais de um milhão de habitantes. Considerando que os que tinham carro sairam por conta própria, caberia ao governo os descartáveis. Pouco mais de 9 mil.

Mas vamos considerar ainda que o pior do desastre foi um episódio imprevisto: o rompimento dos diques. Será? Segundo consta, os diques já estavam com problemas. O que faltou foi política pública? Faltou prioridade para alocação de verbas? Conhecemos esse filme, hem? Que digam os soldados americanos que perambulam pelos destroços do Iraque. Agora poderão retornar para casa, para ajudar suas famílias a reconstruir a capital do jazz. Alá ensina o caminho de volta por vias tortas.

E a incompetência continuou no pós-desastre. Como no 11 de setembro, a Defesa Civil americana só fez trapalhada. Onde estão os bravos bombeiros americanos? Onde está a sociedade voluntária e solidária que construiu o alicerce da democracia mais famosa do mundo? O touro selvagem devorou?

Pois é, né? Estou estarrecida. Mas isso não é nada, perto da ira do prefeito de Nova Orleans, Ray Nagin. Ele está, com toda a razão do mundo, transtornado. Li alguns trechos do seu desabafo para uma emissora de tv americana. Ele se dirigia ao presidente Bush, às autoridades federais e a qualquer alma viva: “preciso de reforços, preciso de soldados. Preciso de 500 ônibus”; “peguem todos os malditos ônibus de turismo deste país e os mandem pra cá!”; “a ajuda está chegando....está chegando...Besteira! Onde está a ajuda?”; “não sou um drogado, eu estou pensando com muita clareza”; “agora mexam-se e arrumem isso aí!”.

E eu fico pensando daqui: agora, mexam-se e assinem logo esse Protocolo de Kioto! Mesmo sabendo que as metas propostas para a redução dos gases causadores do efeito estufa são bastante tímidas, sem a presença do Estados Unidos, o resultado será ainda mais pífio. Pensem bem, 2014 está chegando! Se nada mudar, vamos ter de nos juntar a outros 600 milhões de voluntários para, no dia 20 de julho de 2006, Dia Mundial do Pulo, fazermos a nossa parte. Vamos pular, gente! Quem sabe poderemos conseguir o impossível e modificar a trajetória da terra? Não é mal, hem? Além de contribuirmos para reduzir o impacto do efeito estufa sobre o planetinha, vamos ganhar mais algumas horas extras para o nosso santo dia. Mais algumas horas para vadiar, trabalhar e dormir. Agora mexam-se! Eu já vou começar o meu treinamento. Vou pular da soleira da porta para o chão! Vinte vezes por dia!

PS: O Daniel postou uma foto em itálico invertido. Depois vamos arrumar isso (heheheheh).

Um comentário:

Anônimo disse...

Meus amigos adoram caminhar e pensar e não trocam uma boa conversa ao vivo por nenhuma tela de computador. Estão certos, como sempre.

Vou dar de copista, então, como sugere Vila-Matas. Não há mal nenhum nisso. Olhem só, hoje no almoço em família, o Cláudio fez uma ponderação deveras relevante. Para ele, Alá jamais interferiria nessa pendenga de Kioto, mesmo que concordasse com o pleito.

Ele apresentou dois argumentos imbatíveis. Primeiro: a natureza, além de poderosa, é repetitiva e obstinada, por isso não teme obstáculos. Se mexem com ela, retoma seu caminho, mais cedo ou mais tarde, com mais força e determinação. Não precisa dos deuses para agir.

Segundo: nem Alá nem nenhum outro deus, seja qual for o seu nome, jamais interferiria nas coisas mundanas. Nas coisas do homem. Seria uma contradição imperdoável. Se nos foi dado o livre arbítrio - e nisso todas as religiões concordam: este é um dos nossos principais atributos - como poderiam os deuses influir no destino que escolhemos, para alterá-lo para o bem ou para o mal?

Cláudio acredita piamente que o que nos acontece aqui, forjamos com nossas próprias mãos. Nem os astros nem os deuses conspiram a nossa favor ou contra nós. Hehehehe, o inferno somos nós mesmos....