domingo, agosto 30, 2009

Um mundo de tralhas


Tem isso. Quando as coisas estão no seu lugar nem percebemos como elas se acumulam. Elas vão chegando, se espremendo, cavando espaço até encontrar uma vaga. Se instalam ali e pronto. Aquele pedaço de vazio vira o lugar delas. Só quando precisamos remover tudo de um cômodo para outro é que percebemos a tralha que juntamos na vida. Um mundo inteiramente dispensável, mas que insistimos em preservar acreditando que tem algum significado. Ter até tem, porque damos um a qualquer besteira que caia nas nossas mãos. Um pedaço de papel com um risco torto varando o espaço branco de um canto a outro vira um dragão de fogo invadindo a Terra-Média. O dragão nem é tão importante, mas foi meu menino que rabiscou. Nem tinha dois anos. E foi num dia em que estava chovendo e ele estava febril, com o nariz entupido, para variar, e não podia sair da cama, porque estava sem meias e muito cansado para encontrá-las perdidas debaixo da estante. Passou a manhã deitado, rabiscando papéis e inventando histórias. E eu deixei porque era melhor assim.

Mas os papéis são apenas uma parte das tralhas que juntamos. Tem ainda as roupas que não vestimos mais, porque não nos servem, porque crescemos, engordamos, porque saíram de moda, porque estão gastas ou por qualquer outra razão que nem nos lembramos mais. Mas juntamos um guarda roupa inteiro de pagãozinhos bordados, moletons de mickey, macacãozinhos de bichinhos, saias indianas, um blusão dupla face, twin set de todas as cores, três calças lee desbotadas e rasgadas na barra, um terno cinza com colete e tudo, uma roupa de anjo de alguém que nem sabemos quem, uma camisa listrada, uma fantasia de índio, uma de chaplin, quatro quimonos e meia dúzia de faixas de cores variadas e assim por diante. Tudo dobrado dentro de malas, sacolas, mochilas, tudo escondido nos maleiros. Só porque, em algum momento, conquistaram a glória de ter um significado.

Mas quando temos de tirar tudo isso e mais, muito mais, como uma máquina de retrato polaroid, uma olivetti portátil, uma espada de jedi, um quadro a óleo da Igrejinha do Ó, a coleção do Pasquim e assim por diante, não podemos deixar de ficar brutalmente pasmos com a nossa capacidade em atribuir significados quase eternos para coisas que pertencem, inquestionavelmente, ao mundo das utilidades passageiras. E vamos revirando caixas para esvaziar o cômodo. Aí encontramos a coleção de pedras, de tampinhas, de figurinhas das seleções do mundo inteiro, de dinossauros, de cobras, de bichos esquisitos, de chaveiros, de canetas, de clips recolhidos nas ruas, de papéis laminados que embrulhavam todos os sonhos de valsa que já devoramos desde a nossa adolescência, de papel de carta, de caleidoscópios, de recortes de jornais com notícias bizarras e um sem fim de coleções.

Mas aí tem outra coisa. Como nos desfazermos de tudo isso? Quem será o merecedor desse patrimônio tão valioso? Quem vai querer ganhar de presente uma colcha de crochet, trançada em linha de meia fina desfiada, pacientemente confeccionada por uma vó de mais de 90 anos? Duvido que encontre essa pessoa por aí. Ela não existe. E se existe alguém que queira, irá usá-la como se fosse uma colcha qualquer, sem nenhum significado, pois esse irá se perder para sempre da nossa memória, quando já não pudermos mais encontrar, escondida no fundo de alguma mala, a colcha de crochet de meia fina desfiada que uma dia a vó de quase 90 anos crochetou incansavelmente, para ajudar o tempo a passar. Não. Melhor guardá-la.

Melhor guardar tudo, devolver todas as coisas ao seu lugar. Guardar a colcha, as coleções, as roupas que um dia tiveram um significado muito especial, os papéis, os cadernos, os pedaços de fitas, as caixas de jogos, os relógios, as armações de óculos e toda essa tralha que juntamos na vida. Voltar com tudo para dentro das caixas e desocupar o cômodo o mais rápido possível, porque o pintor já está terminando o corredor e antes que a manhã termine, ele vai entrar no quarto e precisa de tudo liberado. Vai pintar as paredes de branco e a do fundo de verde kiwi para quebrar a monotonia. Vai ficar bárbaro!

Inté.
Foto: do Dani. Um mosquito de Évora.