segunda-feira, abril 30, 2007

Outra verdade inconveniente

Não é fácil entender esse mundo onde vivemos. Nem é simples explicá-lo. Mas, ainda assim, tentamos. Precisamos dar sentido a essas coisas todas que acontecem a nossa volta, pois é assim que encontramos também um sentido para as coisas que fazemos por aqui. De outra forma, a vida se tornaria indiferente, como já vem acontecendo. Nela tudo se explicaria e tudo se desculparia não haveria limites para a ação humana. Até nos rendermos ao cansaço da nossa inexistência. Ou até descobrirmos um jeito de fugirmos para OGLE-2005-BLG-390Lb , o novo planeta descoberto fora do sistema solar e o mais semelhante à terra já encontrado.

Mas Ogle ainda é inacessível, está a 22 mil anos-luz distante de nós e, sinceramente, não sei se faria diferença. Prefiro manter os meus pés no chão e tentar, mesmo que desse jeito desajeitado, entender o que está acontecendo a minha volta. Vou juntando informações, mentiras e verdades, como se fossem peças de um quebra-cabeça, e vou formando possibilidades para entender o mundo onde vivo. Às vezes as imagens são um pouco atrapalhadas demais, preciso desmontar tudo e recomeçar. Outra vezes, me satisfazem, ainda que desagradem a outros. Mas assim vou levando.

Outro dia li o artigo de Edgar Morin, que me fez ver um mundo que me agrada. Um mundo que é possível, se assim quisermos. Hoje li outro artigo. Esse agora não me faz feliz, mas me acalma sabe-lo, pois me dá a certeza de que tem mais alguém, na verdade muitos mais, também pensando nesse mundo e tentando entende-lo. Me dá a certeza de que não somos só um bando de desatinados, imaginando teorias conspiratórias de toda ordem, para tentar compreender os descaminhos que temos percorrido nesses últimos anos.

O artigo é da pensadora norte-americana Naomi Wolf, principal nome do feminismo contemporâneo e referência em filosofia política progressista nos Estados Unidos. Também é consultora informal de Hilary Clinton. Ela publicou um artigo no jornal The Guardian e também concedeu uma entrevista ao jornalista Daniel Buarque, do site G1, falando sobre o tema do seu próximo livro, que deverá ser lançado no segundo semestre: O fim da América – Uma carta alerta a um jovem patriota.

Meninas, não percam esse aperitivo. Tanto no artigo, quanto na entrevista, ela resume o seu diagnóstico sobre a democracia americana. E, olhem, a situação não é nada boa. A democracia americana está com sintomas graves de debilidade e corre sério risco de sucumbir a qualquer momento. Meu caçula diria que não há nada de excepcional nisso. Esse é o destino e a trajetória de todos os grandes impérios. Eles fazem uma longa caminhada até atingir o auge da sua influência; depois, do alto da sua prepotência, tentam assumir o controle do mundo e, para isso, se assim for necessário, abrem mão de todas as suas convicções e princípios. Finalmente, derrotados pela natureza plural da humanidade, degringolam ladeira abaixo, num movimento de conseqüências nem sempre previsíveis. Ele aprendeu isso nos seus livros de história do ensino fundamental, mas sempre me surpreende pela sua facilidade de conectar a literatura com a vida real.

Pra mim isso é bem mais difícil. Sempre acho que uma coisa não tem nada a ver com outra. Literatura é literatura e vida é vida. Custo a conectar. Mas para Naomi e para o meu caçula isso é natural. Naomi observa que os Estados Unidos estão seguindo a mesma trilha de todos os outros regimes que abandonaram a democracia e se tornaram ditaduras, de direita ou de esquerda. Para identificar o traçado dessa trilha, Naomi usou um texto de Umberto Eco, publicado no New York Review of Books, em junho de 1995, no qual o filósofo italiano lista as 14 características fundamentais de todos os regimes fascistas da história.

Ela analisou e identificou na democracia americana dez dessas características: a referência a uma ameaça permanente (no caso, o terrorismo); criação de um gulag (a prisão de Guantánamo); formação de uma casta violenta (republicanos radicais); montagem de um sistema de vigilância interno (espionagem de cidadãos); opressão de grupos cidadãos (grupos contra a guerra são ameaçados); perseguição e permissão de prisões arbitrárias; ameaça a cidadãos; controle da imprensa; tratamento de dissidência como traição; suspensão do Estado de Direito.

Não vou ficar repetindo aqui o que já está dito. Os links estão no texto, naveguem à vontade. Depois durmam tranqüilos se for possível. bush, aquele de sempre, dorme. Nem percebe que estamos percebendo tudo que ele está fazendo. Depois de ler os textos de Naomi, leiam o livro de Al Gore ou vejam o documentário. Estou lendo o livro e tenho uma pena danada dos americanos. Eles devem estar se lamentando desesperadamente por terem deixado as eleições de 2000 terminarem como terminou.

Boa mais vadia para todos vocês no Dia do Trabalho!

quarta-feira, abril 25, 2007

Terra pátria

Acharam criptonita na região de Jadar, na Sérvia. Adivinhem quem foi o autor desse grande feito? Não sei o nome de todos da equipe, mas o boss é Chris Stanley, um inglês, claro. E poderia ser diferente? Difícil. Eles são uns loucos. Mas, isso não vem ao caso agora. O fato é que acharam criptonita. Só que eles estão com um problema: ao que parece, esse lote é pirata. Está meio bichado.

Pelos exames laboratoriais, os pesquisadores do Museu de História Natural de Londres observaram que a fórmula do material encontrado inclui quase todos os elementos da criptonita original. Quase, mas não todos. Como as rochas de Krypton, o planeta natal do Super-Homem, a mostra encontrada pelos ingleses tem rastros de sódio, lítio, boro, silicato e hidróxido. Mas falta o flúor, que é o que faz a criptonita brilhar. Logo mais, os pesquisadores deverão explicar o porquê dessa deformação. E, acho, vamos entender.

Vencida, então, essa primeira etapa, podemos passar para o segundo grande desafio: encontrar o super-homem. Meninas, acho que essa será uma tarefa insana. Até temos alguns super-homens, mas hoje, exatamente hoje, estamos em falta. Os nossos líderes e ídolos atuais são pessoas tão normais, tão cheias de pecados, de limitações, vícios, defeitos, que acho difícil esconderem na alma um exemplar de super-homem.

Na falta dele, o que nos resta? Sugiro nos virar com o que temos. E olhem, descobri que temos, no meio desse mar de homos normales, uma espécie muito especial, de homos-cuorationes, que é muito melhor do que super homem. Um representante deles, por sinal, escreveu um artigo ontem, publicado no Le Monde, que me deixou em estado de encantamento puro. Ele tem um plano. Não nos oferece a salvação, como advertiu, pois precisaremos percorrer um caminho longo e difícil, mas se toparmos a empreitada, teremos boas chances de encontrarmos uma saída.

Esse homo-cuoratione é Edgar Morin. Não preciso falar mais nada, não é? Acho que nem devo. Voltemos ao que ele disse, que é o que interessa. Então, Morin afirma, de cara, que o sistema planetário está condenado à morte ou à transformação. Ele faz a segunda opção e propõe um plano para a França, que se estende a todos nós, de uma mudança de padrão civilizatório, para alcançarmos a Terra Pátria e uma Sociedade Mundo.

Vou imitar o Clóvis Rossi, que comentou o artigo hoje, na Folha de São Paulo, e preferiu não resumi-lo, mas indicar o link. Só não resisto a dar dois pitacos. Um: Morin defende, já nas primeiras linhas, uma ampla reforma da ONU, para garantir a ela, plenamente, um papel de liderança mundial. Isso é tão óbvio, tão claro, que fico pasma de ainda precisarmos ter de dizer isso. Fico pasma, mas até entendo. Com um bush na cola e um bando de empresas desterritorializadas, com poderes de Estado, como fortalecer um organismo supranacional, democrático, multi e pluri cultural? É difícil, mas acho uma pobreza ainda não termos sido capaz de transformá-la nesse organismo desejado por Morin.

Dois: Morin resgata da história um dos bons refrões que já fomos capaz de inventar. Já inspirou até muito samba enredo nos carnavais brasileiros: liberdade-igualdade-fraternidade. Lembram? Pois é, mas desta trilogia republicana, Morin destaca apenas um de seus elementos, o menos valorizado deles: a fraternidade, e propõe construir um sistema até relativamente simples, de caráter solidário, para a redenção da nossa humanidade.

Torcerei por ele, todos os dias. Mesmo que alguns amigos me digam que esse é apenas um texto literário e que outros me garantam que é um poço de ingenuidade. Prefiro concordar com a Rutinha. Nós nos constituimos é através da palavra e, se queremos mesmo um mundo melhor, primeiro é preciso que alguém diga isso. Então, pronto, está dito. E, todos os dias, continuarei torcendo pelo plano de Morin.

Um dia de inspirações fraternais para todos.

domingo, abril 22, 2007

Do nada ao nada

É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar.
(Chico e Gil)

Tem dias que acordo pretensiosa. Muito mais do que poderia. Acordo me achando mesmo. Senhora de todas as palavras. Crente de que serei capaz de transformar em pedra o que é, por natureza, fugaz e efêmero. Mais grave, crente de que serei capaz de transformar em pensamento, razoavelmente coerente, as idéias que vagueiam distraidamente pela minha cabeça. Criar um caso, histórias, a partir de uma única palavra, que se acende dentro de mim exatamente naquele momento, entre o sono e o despertar, entre o escuro da noite e a luz ainda mansa da manhã.

Vazio. Essa foi a palavra que me despertou essa manhã. Sei de onde ela brotou. Saiu do rótulo de uma garrafa de coca-cola que comprei no supermercado. Coca-cola Zero, que interpretei como sendo vazia. É daí que queria tirar uma história, inventar um pensamento qualquer. Mas o dia foi passando, veio a chuva, veio o vento e, quando me sentei para por as idéias em ordem, elas já tinham ido embora. Ou pior, continuam aqui, mas não dou conta delas. Não como gostaria.

Um dia li em algum lugar que estamos nos especializando no consumo do vazio. Assinamos um e-mail com memória gigapotente, que nunca vamos esgotar. Mas queremos assim mesmo e continuamos querendo mais. Ainda que seja para ficar vazio. Assim como também vai ficar em boa parte vazia a memória do aparelhinho que compramos para guardar músicas. Vinte mil músicas! Claro que o homem já foi capaz de produzir muito mais do que isso, mas não seria capaz de listar mais do que cem, com algum significado para mim, para salvar nesse aparelhinho. O resto seria silêncio.

E seguimos querendo mais qualquer coisa, principalmente, se estiver cheio de nada. Um carro que corra a uma velocidade de até 260 quilômetros por hora, mesmo que nunca tenhamos a oportunidade de um dia pisar fundo no acelerador. Um celular que seja tudo junto, mas que vamos usar apenas para discar eventualmente para alguns poucos amigos e deles receber ligações também esporádicas. Um google, que tenha todas as informações sobre tudo, mas que nunca seremos capaz de juntá-las, para formar um conhecimento que dê conta de nos explicar o que é esse mundo onde estamos vivendo. Uma cafeteira que ainda esquenta o leite, torra o pão, passa a geléia e nos deseja bom dia! Não sei se existe, mas bem que poderia, mesmo que só fossemos usá-la para passar o café. Querendo.

Acho que estou me lembrando de como foi que tudo isso começou. Acho que estou: foi com a durex dupla face! Naquela época nossas ambições eram bem mais modestas e até que funcionavam bem. Mas acho que agora exageramos. O vazio que consumimos diariamente já nem se limita mais apenas às coisas. Estamos nos tornando especialistas nessa generalidade. Lembrei agora de um texto de Norval Baitello Jr., que li um dia não sei a troco de quê. Ele falava das infinitas possibilidades que temos hoje de nos comunicarmos com o mundo. Mas chamava a atenção para o fato de que, ao mesmo tempo em que crescem e diversificam-se essas possibilidades, cresce também, em idêntica proporção, os riscos de incomunicação com o mundo, com os outros homens e dele consigo mesmo. Comunicação e incomunicação andam juntas, de mãos dadas. A possibilidade e a impossibilidade com todas as suas lacunas e boicotes, como se fossem uma.

E, ainda assim, buscamos. Buscamos o tudo, o todo, o mais alto, o mais distante, embora ali não iremos encontrar grandes coisas além do vazio, do nada, porque o que procuramos está é bem dentro de nós e o que precisamos está é bem ao nosso alcance. Mas buscamos. Como busco agora transformar em pensamento, um sentimento que não se expressa em palavras. Não toquei nem tangenciando a idéia que me passou pela cabeça, hoje cedo, quando acordei. E vou deitar com a mesma palavra retumbando na cabeça. Um texto cheio de nada, foi o que consegui fazer. Vou deitar com as mesmas perguntas, da mesma forma sem resposta. Talvez porque também estejam cheias de nada.

Mas, ainda assim, pergunto. Com o que haveremos de preencher os vazios da nossa existência pós-moderna? Ou será que viramos um imenso plástico bolha? Estaremos todos, irremediavelmente, atados a um complexo sistema de redes globalmente conectadas, através de pontos cheios de nada? Ou será que esse vazio ganhou significado? Intransigência. Ou tornou-se o sentido explícito da nossa existência, nesse mundo caótico de deus? Diz agora tanto quanto um copo vazio, cheio de ar?

Uma semana de agenda cheia para todos, assim não sobra tempo para ficarmos esperdiçando pensando em nada.

Buenas.

quinta-feira, abril 19, 2007

Vagarosa mente

Hoje estou por conta do vagar. Não quero por as idéias em ordem. Não por enquanto. Quero-as em ponto de ebulição, fervendo, mudando de um estado para outro, mais fluído, mais leve. Talvez assim, se desfazendo no ar, tornem-se mais compreensíveis, se é que é possível compreender o incompreensível.

E se vou ficar só vagando pelas notícias que rolam na tela, pelas manchetes dos jornais, que saltam sobre meus olhos e embaçam a minha visão de mundo e me confundem sobre o certo e o errado, então, se vou só divagar mesmo, que seja sobre nada.

Não vou nem me permitir distrair com as besteiras que às vezes me divertem. Fazer perguntas sem resposta, por exemplo. Qual é a capital do Brasil? Se continua sendo Brasília, por que bush, aquele, e o papa, que não é mais pop, vão é a São Paulo? E o que o papa vem fazer no Brasil? Vem rezar ou comer? Por que os jornais, então, só falam do cardápio que ele terá na sua passagem pelo país?

Nhoque com mandioquinha, sopa de palmito, broinha de fubá, bombons de todo tipo, nozes fingida, vinhos e águas e massas variadas. Então, o que o papa pensa sobre o papa? O que pensa sobre Boff, Casaldáglia e tantos betos e marcelos, não o padre, mas o Picolo? O que o papa pensa sobre o que pensa?

Mas nem! Não vou me permitir dar risadas hoje. Também, porque daria? Recapitulando: segunda, 31 muertos; terça, quase isso, quarta, mais de 200. É a obesa estatística da violência. Três manchetes seguidas, de diferentes lugares do planeta, por razões que também não coincidem, mas que estão sincronizadas, sintonizadas, alinhadas, irmanadas no mesmo jargão: bang-bang. A cultura contemporânea é assim. É dark, é dura, é crua.

Mas nem! Também já disse que não vou pensar nem por ordem nas idéias, ops, as idéias em ordem e assim por diante. Amanhã, quem sabe, quando elas se dissolverem no ar, virarem poeira no vento e vierem pousar aqui, nas teclas desse computador, quem sabe, encontre as melhores letras que combinem com minhas melhores idéias.

Um dia ao vento, sem amarras nem conexões.

Inté, porque hoje já é amanhã e levanto cedo, aconteça o que acontecer.

sábado, abril 14, 2007

Mais menos, se é possivel

Meninas, temos um problema. Diria mais, temos um problemão. Nossa estratégia para enfrentar o aquecimento global está rolando ladeira abaixo. Acho que não teremos nem força para evitar que ela se esborrache na primeira esquina. Sinto muito dizer isso, mas às vezes é melhor mesmo abusarmos logo da franqueza, para chegarmos mais rápido ao que interessa.

Até ontem, não tínhamos dúvida de que se conseguíssemos mudar o nosso comportamento nos shoppings e diminuir nossas idas ao supermercado, além de boicotar a indústria de marcas, o mercado da moda e desmascarar o país das maravilhas da publicidade e assim por diante, nós conseguiríamos conter o nosso desejo desenfreado de consumo. Querendo menos, cada vez menos, alcançaríamos o ideal de reduzir os nossos gastos apenas ao necessário, somente o necessário e, vitoriosas, estaríamos contribuindo de uma forma absolutamente fundamental, para restabelecer os padrões sustentáveis de consumo e produção do nosso planeta. Estão lembradas?

Pois é. Agora esqueçam tudo isso. Não temos a menor chance. Me falaram de um livro, que já é até bem antigo, mas que demonstra que não há a menor possibilidade de um dia isso vir a acontecer. Pelo menos, não no ritmo e na intensidade que precisaríamos para que nossos objetivos fossem alcançados. E é melhor assim. Ainda não li, mas uma hora vou ler, porque já gostei muito do comentário que me fizeram sobre ele. Foi o suficiente para que eu concordasse com o autor e me voltasse aquela vontadezinha danada de comprar mais um livro para colocar na cabeceira da minha cama. Ai ai.

Mas vamos lá. O livro é de Néstor García Canclini e chama-se Consumidores e Cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Nem sei se o que comentávamos, quando Canclini foi citado, resume mesmo a idéia central do livro, mas deve estar presente em algum momento do texto. Naquela hora nós falávamos de identidade. É óbvio que todos nós precisamos de uma. Quem vive sem uma identidade? Isso é nosso mesmo, o sentimento de pertencimento, de fazer parte de uma tribo qualquer, é como o ar que respiramos. Sem isso, nem existimos. Ou pelo menos pensamos que não.

Bem resumidamente, Canclini entrou na história porque, no livro, ele cita esse processo, de construção da identidade, e o relaciona exatamente com o consumo. A idéia dele, se captei direitinho, é a seguinte: quando vivíamos nas comunidades rurais, nossa identidade nos era dada pelos parentescos que herdávamos. Sou fulana, filha de beltrana e do seu beltrano. Era assim até ficarmos velhinhos. E se nossos avós e pais eram pessoas do bem, melhor ainda, porque isso só abria portas para nós. E essa identidade nos bastava. Nessa época, também, tínhamos uma necessidade de consumo muito básica. Às vezes, nem queríamos. Eram as coisas que chegavam lá. E isso não nos fazia infeliz.

Nas sociedades modernas, altamente urbanizadas, a construção da nossa identidade tornou-se um pouco mais complexa. É claro que o filho de Abílio Diniz, continua sendo o filho de Abílio Diniz, herdando uma identidade que abre portas. Mas isso só não é mais suficiente. Nem para ele nem para todos nós, que nos misturamos no meio da multidão. De que adianta falarmos que somos fulaninha, filha de beltrana e seu beltrano? Quem são esses dois ilustres desconhecidos? Então, o que Canclini fala é que, a partir daí, esse processo tornou-se mais complicado. Hoje, precisamos construir a nossa identidade a todo momento. E se ela não se revela mais no sobrenome que carregamos, temos de buscar substitutos.

Aí é que a história começa a se complicar e nossa estratégia maquiavélica começa a rolar ladeira abaixo. Para ele, a saída que encontramos, ou que nos deram, sei lá, foi a de compor a nossa identidade através do consumo, principalmente, do consumo de supérfluos, já que o básico hoje, praticamente todo mundo tem. Vocês não chegariam num lugar qualquer e se apresentariam assim: eu sou fulana, tenho um par de sapatos, um relógio, uma bolsa tiracolo e uns óculos de grau? Não iriam, não é mesmo? Dependendo da sua tribo, vocês estariam usando um sapato determinado, um relógio que é o relógio e assim por diante.

Os personagens que vão surgindo nesse processo são construídos, então, influenciados por diversos fatores, mas um é determinante. É sempre assim, temos várias opções, mas uma sempre é mais forte que a outra. É determinante. No nosso caso, esse fator é a televisão e, mais ainda, a publicidade. É ela quem dá significado para esse mundo de coisas que jogam no mercado todos os dias. É ela quem me diz qual xampu devo usar para me sentir bem loura, bem linda, bem sexy e tal. É ela quem me diz que devo ser cliente daquele banco, porque, nele, todas as clientes são muito inteligentes, cultas, articuladas e modernas. Então é assim, vou vendo na televisão, olhando para a minha turma, percebendo o meu espaço e compondo a minha identidade. Uma ou várias, dependendo da minha ansiedade.

Aí vem a parte mais dramática dessa história. Deixar 80% dessa moçada toda, que está por aí, fora do consumo é um perigo inimaginável, conforme alerta Canclini. Se eles não puderem comprar os adereços que irão compor sua identidade, não tenham dúvida, eles vão tomá-los de alguém. E não é porque são maus, ou porque estão passando fome, ou porque querem se vingar de quem tem, ou porque são doentes, loucos, bárbaros. Vão tomar, porque precisam disso como precisam do ar. Eles, como nós, querem uma identidade. Estão atrás dos significados que inventamos no país das maravilhas da publicidade. E se fosse só isso, estava bom. Mas estão atrás de todos os significados disseminados pelo mundo afora. E a violência, não tenham dúvida, é um deles. Basta abrir o jornal, ligar a televisão, ir ao cinema, andar na rua. Então, eles querem o mizzuno e, se possível, respingando sangue. Querem fazer sentido também. Pertencer.

Sentiram o drama? Acho que nem o capitalismo 3.0, em versão atualizada, pode dar conta disso. A situação ficou muito complicada, meninas. Precisamos nos encontrar novamente e rever nossas estratégias. Talvez, além do bolsa família, Lula precisará distribuir também bolsas consumo supérfluo. Enquanto isso, nossos planos vão pras cucuias. Já viram, não é?

Para todos, um domingo quietinhos dentro de casa, olhinhos fechados, ouvidos tampados, para não ter nenhuma vontade de nada. Mas antes, um fim de sabadinho ao som do Uakti para todos. Eu vou.

Inté. Agora, só quando der mesmo. Estão lembrando dos dias mínimos, não é?

domingo, abril 08, 2007

Feira livre

Foto: Minha. Na feira do São Pedro

Hoje acordei cedo e fui passar os olhos na Folha de São Paulo. Domingo sempre tem alguma coisa interessante para ler. Mas desisti na primeira página. Fiz melhor. Fui preparar uma bacalhoada e mudar de assunto. O mundo anda muito esquisito e domingo é mais recomendável buscarmos sossego, porque logo depois vem uma segunda-feira.

Olha se não tenho razão. Sempre leio o jornal de baixo pra cima, para não deixar me influenciar pela manchete e perder as outras notícias relevantes. Depois da primeira página, também pulo para a última e leio o jornal de trás pra frente. Acho que é por isso que o mundo, às vezes, me parece sempre meio esquisito e confuso. Mas hoje não consegui passar da primeira página.

Vi lá, num cantinho, uma foto à meia luz, quase na penumbra, e a chamadinha em letras brancas e puras: Edemar culpa BC pela quebra do Banco Santos. Puxa vida, como é que esse cara ainda encontra espaço na mídia, para falar o que pensa? Tanta gente boa por aí com coisas interessantes para contar, vão me desenterrar Edemar! E o Zé Mané que bateu a carteira de um fulaninho na Paulista? Onde é que ele vai contar sua versão?

E tô ferrada! Já tinha me dado por satisfeita de envelhecer do jeito que deus quer. A Dove me ajudou a tomar essa decisão. Embora seus produtos também me dêem alergia, a Dove me garantia que é possível ser bonita do jeito mesmo que somos. Agora vem a Folha me contar que uma psicóloga de Harvard - ai os avanços da ciência! - descobriu que a beleza não só existe, como é injusta mesmo. Duvidei. Fui lá conferir e quebrei a cara. É isso mesmo. Beleza é para poucos e não adianta querermos democratizar o conceito. Pra ficar mais ou menos na foto, tem de usar sim todos os cremes que anunciam, beber muita água, comer alface, dormir cedo e tudo mais que já nos disseram um dia. Ave! Mas continuarei na minha jornada solitária, porque não tenho outro jeito. Um dia conto essa história.

E outra: a manchetinha do Cotidiano. Quase deprimi o resto do domingo. Mães no climatério e filhos na puberdade deixam maridos entre dois fogos. Pode isso, meninas? Agora a culpa é nossa, outra vez. Mãe não tem perdão. Nem na menopausa eles têm complacência com nós outras. E o maridão lá, vítima das circunstâncias. Ô coitado, hem? Mas na hora que o bicho pega pra valer, me respondam meninas, quem é que aparece para apaziguar os ânimos e encontrar um meio termo que atenda a todos? Quem é? Não somos nós? Como são eles que ficam entre dois fogos?! Merecemos, não merecemos?

Não quis nem entrar em detalhes, mas fiquei intrigada, querendo mesmo entender o que é que a Folha está pretendendo com isso? Cresce o apoio à pena de morte, diz Datafolha. Sinceramente, isso me intriga. Lá em 88, já existia uma maioria que se dizia favorável à pena de morte, mas nem por isso perderam o bom senso. Rejeitaram qualquer mudança na Constituição brasileira que tornasse essa prática legal. Agora não deve ser muito diferente. Continua sendo feio aplicar a pena de morte, embora, no caos em que estamos metidos e na falta de políticas públicas mais criativas, seja razoável alguém defender a pena de morte, ainda que em tese. Mesmo porque, seria inócuo ter a possibilidade de aplicá-la. Com a agilidade da nossa Justiça é mais certo o condenado morrer de velhice, do que numa cadeira elétrica ou o que for. E tem mais, questionário de pesquisa o povo responde o que esperam que ele responda, porque ninguém quer pagar mico com a menina da entrevista, né? Minha professora que me disse isso e eu concordo. Então, resultado de pesquisa tem de ser lido com mais cuidado e não virar manchete de domingo, mesmo que secundária. Por isso me intriga.

E o relatório da Federação Internacional das Associações dos Controladores de Tráfego Aéreo? Sem comentários. Muito isento, esse relatório. Tudo bem, o Cindacta-1 já é quase um quarentão mesmo, mas está em plena forma, não é não? Diria até mais: está na flor da juventude! Os Estados Unidos possuem uma rede de radar que é ainda mais antiga que a brasileira. Boa parte do país está coberta com unidades construídas entre 1960 e 1970. E, até hoje, isso não mudou muito, apesar dos problemas que o país enfrentou durante o 11 de setembro. Depois disso, o que as Forças Armadas norte-americanas fizeram foi visitar o Brasil para conhecer o nosso sistema integrado e, com base no que viram, prepararam um relatório pedindo, explicitamente, a adoção de um sistema integrado, usando como modelo a solução brasileira. Mas não mencionou a necessidade da troca de radares. Pelo menos foi isso que o Correio Braziliense noticiou no dia 16 de julho de 2002. Então? O que a Ifacta está querendo agora? Vender consultoria? E desde quando psicólogos entendem de controle aéreo? Se muito, dão conta de descontrole emocional.

E, por fim, uma notícia velha. Transformaram o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática num novelão. Essa é de sábado, mas ficou na minha cabeça, como uma enxurrada depois da chuva. Então, estão divulgando o relatório em capítulos, cada um mais dramático que o outro. Isso me preocupa muito. Essa estratégia não tem dado muito certo com as novelas da Globo. O ibope delas só vem caindo. Do relatório, não sei, mas já estou sentindo um certo desinteresse. As notícias já estão caindo no tititi mundano. Fulano disse isso, sicrano falou aquilo, alguém exagerou, beltrano abrandou as conclusões do relatório para atender interesses políticos e assim vai. Daqui há pouco, na cobertura do próximo capítulo, vão chamar o repórter da Contigo ou de Caras para fazer a matéria.

E chega de feira livre por hoje. Tenho dois escorredores cheios de louças e cristais para guardar. Divagar agora, só se for na cozinha!

Feliz páscoa para todos!

Tomara que o coelhinho tenha sido generoso com vocês, por aqui deixou saborosas línguas de gato e chumbinhos meio amargo! Adoro!

terça-feira, abril 03, 2007

No susto

Já disse que não estou dando conta desses dias mínimos, que não acolhem nada além da agenda. Já disse, não disse? Agora, para complicar ainda mais o meio de campo, inventei de me especializar novamente. É estranha essa opção, num mundo cada vez mais genérico. Até eu fiquei pasma, mas cansei de ficar pensando no que seria melhor e no susto topei. É assim. No susto a gente faz coisas que não faria se tivesse mais alguns segundos para pensar.

No susto, por exemplo, o Lula mandou seu pessoal evitar a intervenção militar no movimento dos operadores de vôo do último final de semana. Depois, conseguiu alguns minutos para pensar e a ficha caiu. Voltou atrás. Mas demorou e virou o centro da crise. Enquanto isso, continuamos sem saber o que se passa nos bastidores. Só nos mostram o palco da crise. Aeroportos lotados, vôos atrasados, gente reclamando, brigando, chorando, como se tivessem sido apanhadas no susto. Se tivessem parado para pensar um pouco, teriam ficado em casa, feito reunião pelo viva voz, pela internet, videoconferência ou o que for, até mesmo adiado um compromisso inadiável. Afinal, na vida tudo é provisório. Não há nadica de nada que seja definitivo e irremediável. Só o fim.

Mas no susto, outros 193 mil* potenciais passageiros da aviação comercial brasileira desistiram de enfrentar fila nos aeroportos e compraram um carrinho zero para fazerem seu percurso por terra mesmo. A indústria automobilística brasileira agradece sensibilizada. Teve o melhor março da sua história, com um aumento nas vendas de 31.8% em relação ao mês de fevereiro. Os novos felizes proprietários de um carro zero ainda não tiveram tempo para pensar, mas, quando chegar a primeira prestação, se não levarem outro susto, encontrarão alguns minutos no seu dia para chorar sobre o leite derramado e fazer uma profunda reflexão sobre essa decisão que, desconfio, foi precipitada.

Ainda no susto, 15 marinheiros britânicos, capturados pelo governo iraniano, ultrapassaram a fronteira móvel que divide as águas territoriais entre o Iraque e o Irã no Golfo Pérsico. Se tivessem tido tempo para pensar, teriam adentrado o rio Eufrates ou o Tigre, em vez de ficar brincando de mãe da rua em área de contestado. Não que, subindo o rio, fossem encontrar um clima menos beligerante, mas, pelo menos neles as linhas são mais bem traçadas e não criam margem sem leito. Lá não haveria risco de serem colados numa polêmica como a que estamos sendo obrigados a assistir agora.

No susto também, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que a Agência de Proteção Ambiental americana tem a autoridade para regular as emissões de gases-estufa por automóveis. A corte decidiu ainda que a agência não pode dispensar sua autoridade para controlar esses gases, que contribuem para a mudança climática, a não ser que forneça argumentos científicos para a recusa. Ainda bem que a Corte não teve tempo para pensar e decidiu de supetão. Se parasse um minuto e avaliasse o tamanho da briga que estava comprando, teria repensado sua decisão. bush, aquele que não precisa mais assinar o Tratado de Kioto, ainda não se recuperou do susto. Mantém-se em silêncio sepulcral. Eu dispenso seus comentários. Agora só quero ação impulsiva.

E assim, de susto em susto, caminha a humanidade. Eu vou junto, mas não sei se vou dar conta de chegar ao fim. Se, de repente, no meio do caminho, um trem qualquer me assustar, me deixo levar sem nem pensar. Qualquer trem, desde que seja mais atraente, mais divertido e menos maçante do que quatro aulas numa noite de sexta-feira, seguida de mais tantas outras num sábado inteiro. Qualquer trem mesmo e, principalmente, se for um que me deixe divagar sem fronteiras, o jeito que mais gosto de pensar. Se for assim e for no susto, acho que me deixo levar sim. Ou será que não?


Que nossos anjinhos da guarda não nos preguem nenhuma peça nessa noite e que amanhã o sol amanheça no mesmo leste de sempre.

Inté mais ver. No susto.

* Exagerei. Tinha postado 490 mil e lá vai pedrada. Mas esse número refere-se ao total de vendas do setor automobilístico no período de janeiro a março. Aí, ouvi no CBN Brasil, que as vendas de março ficaram em 193 mil, o que corresponde a um crescimento de 31,8% em relação à fevereiro. É isso. Agora tudo está mais preciso.