domingo, abril 22, 2007

Do nada ao nada

É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar.
(Chico e Gil)

Tem dias que acordo pretensiosa. Muito mais do que poderia. Acordo me achando mesmo. Senhora de todas as palavras. Crente de que serei capaz de transformar em pedra o que é, por natureza, fugaz e efêmero. Mais grave, crente de que serei capaz de transformar em pensamento, razoavelmente coerente, as idéias que vagueiam distraidamente pela minha cabeça. Criar um caso, histórias, a partir de uma única palavra, que se acende dentro de mim exatamente naquele momento, entre o sono e o despertar, entre o escuro da noite e a luz ainda mansa da manhã.

Vazio. Essa foi a palavra que me despertou essa manhã. Sei de onde ela brotou. Saiu do rótulo de uma garrafa de coca-cola que comprei no supermercado. Coca-cola Zero, que interpretei como sendo vazia. É daí que queria tirar uma história, inventar um pensamento qualquer. Mas o dia foi passando, veio a chuva, veio o vento e, quando me sentei para por as idéias em ordem, elas já tinham ido embora. Ou pior, continuam aqui, mas não dou conta delas. Não como gostaria.

Um dia li em algum lugar que estamos nos especializando no consumo do vazio. Assinamos um e-mail com memória gigapotente, que nunca vamos esgotar. Mas queremos assim mesmo e continuamos querendo mais. Ainda que seja para ficar vazio. Assim como também vai ficar em boa parte vazia a memória do aparelhinho que compramos para guardar músicas. Vinte mil músicas! Claro que o homem já foi capaz de produzir muito mais do que isso, mas não seria capaz de listar mais do que cem, com algum significado para mim, para salvar nesse aparelhinho. O resto seria silêncio.

E seguimos querendo mais qualquer coisa, principalmente, se estiver cheio de nada. Um carro que corra a uma velocidade de até 260 quilômetros por hora, mesmo que nunca tenhamos a oportunidade de um dia pisar fundo no acelerador. Um celular que seja tudo junto, mas que vamos usar apenas para discar eventualmente para alguns poucos amigos e deles receber ligações também esporádicas. Um google, que tenha todas as informações sobre tudo, mas que nunca seremos capaz de juntá-las, para formar um conhecimento que dê conta de nos explicar o que é esse mundo onde estamos vivendo. Uma cafeteira que ainda esquenta o leite, torra o pão, passa a geléia e nos deseja bom dia! Não sei se existe, mas bem que poderia, mesmo que só fossemos usá-la para passar o café. Querendo.

Acho que estou me lembrando de como foi que tudo isso começou. Acho que estou: foi com a durex dupla face! Naquela época nossas ambições eram bem mais modestas e até que funcionavam bem. Mas acho que agora exageramos. O vazio que consumimos diariamente já nem se limita mais apenas às coisas. Estamos nos tornando especialistas nessa generalidade. Lembrei agora de um texto de Norval Baitello Jr., que li um dia não sei a troco de quê. Ele falava das infinitas possibilidades que temos hoje de nos comunicarmos com o mundo. Mas chamava a atenção para o fato de que, ao mesmo tempo em que crescem e diversificam-se essas possibilidades, cresce também, em idêntica proporção, os riscos de incomunicação com o mundo, com os outros homens e dele consigo mesmo. Comunicação e incomunicação andam juntas, de mãos dadas. A possibilidade e a impossibilidade com todas as suas lacunas e boicotes, como se fossem uma.

E, ainda assim, buscamos. Buscamos o tudo, o todo, o mais alto, o mais distante, embora ali não iremos encontrar grandes coisas além do vazio, do nada, porque o que procuramos está é bem dentro de nós e o que precisamos está é bem ao nosso alcance. Mas buscamos. Como busco agora transformar em pensamento, um sentimento que não se expressa em palavras. Não toquei nem tangenciando a idéia que me passou pela cabeça, hoje cedo, quando acordei. E vou deitar com a mesma palavra retumbando na cabeça. Um texto cheio de nada, foi o que consegui fazer. Vou deitar com as mesmas perguntas, da mesma forma sem resposta. Talvez porque também estejam cheias de nada.

Mas, ainda assim, pergunto. Com o que haveremos de preencher os vazios da nossa existência pós-moderna? Ou será que viramos um imenso plástico bolha? Estaremos todos, irremediavelmente, atados a um complexo sistema de redes globalmente conectadas, através de pontos cheios de nada? Ou será que esse vazio ganhou significado? Intransigência. Ou tornou-se o sentido explícito da nossa existência, nesse mundo caótico de deus? Diz agora tanto quanto um copo vazio, cheio de ar?

Uma semana de agenda cheia para todos, assim não sobra tempo para ficarmos esperdiçando pensando em nada.

Buenas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que belíssimo texto. Vou recomendar amanhã em meu blog!

Você fez uma passagem por nossos desejos, muitas vezes egoístas, com uma suavidade incrível. Adorei mesmo. Parabéns.

Beijos!

Ah! Vi que você puxou novamente o assunto da comunicação na comunidade, vou esperar para ver se alguém mais comenta...