"Tenho faro, não preciso de complexidade"
Boaventura de Sousa Santos, in Escrita INKZ - anti-manifesto para uma arte incapaz
Todo dia 15 de novembro, nos últimos 15 anos, aproveitava o feriado da República para montar a nossa árvore de Natal. Cada ano de um jeito. Já fizemos árvores com bolas vermelhas, outra com bolas douradas, outra só com anjos e assim por diante. A do ano passado acho que foi a mais bonita. Decidimos não comprar enfeites novos, mas fazê-los, com pedrinhas vermelhas de bijuterias, miçangas douradas e fio de nylon. Acho que foi para encerrar um ciclo mesmo.
Este ano, nem estávamos nos lembrando de jingle bell. Cada um estava ocupado com uma coisa diferente e nos desconcentramos. O espírito natalino passou batido nesse feriado. Aí, agora, no finalzinho da tarde, resolvemos assistir a um filme temático para ver se pintava um clima: O Expresso Polar. É um filme em 3D, que conta a história de crianças que estão perdendo a crença no bom velhinho e ficam ali querendo e não querendo acreditar nessa história. É bem bacaninha mesmo. Mas acho que não ajudou muito.
Ajudou foi a sossegar meus pensamentos, que estavam perdidos no meio de um mar revolto. Nestes últimos dias li tanta sopa de letrinha que os assuntos foram se misturando, se embaralhando de tal jeito que já não estava entendendo era mais nada. Mas se é mesmo para bagunçar, vamos fazer direito né? Pus tudo no liquidificador de novo e bati na velocidade mais alta.
Olhem só: tão dizendo que o mundo está passando por uma crise de identidade. Já pensei nisso, quando tentava entender o caso brasileiro. Pensei até em sugerir um divã coletivo, para resgatar a nossa trajetória histórica . Mas agora a crise está mais brava, porque rompeu fronteiras. Como no Brasil, os governantes de outras partes do mundo já não sabem mais para onde conduzir seus governados. Os governados, muito menos, não têm nem idéia de para onde querem ir. E ninguém mais sabe quem é quem e muito menos o que é que está fazendo por aqui.
A política, que ajudava a dar esse rumo, perdeu seu norte e ficou presa numa luta de foice dentro de um quarto escuro, onde alguns poucos, que se dizem representantes de alguns muitos, disputam espaços minguados dentro de estruturas de poder que não têm mais nenhuma relevância, a não ser garantir um mensalão para seus donos. Num Estado mínimo, incapaz de atender às demandas básicas de uma sociedade, para que serve a política? Numa sociedade com interesses totalmente fragmentados, reduzidos a causas particulares, pra que serve a política?
Quando a vida era menos complicada, a política ajudava a organizar esses interesses e encaminhá-los aos governantes que, com bom senso, estabeleciam prioridades e atendiam-nas conforme essa ordem. Hoje esses interesses são múltiplos, dispersos e muitos brigam entre si. Não há também assim mais partidos políticos que dêem conta de representá-los e nem espaços democráticos onde cada grupo possa, por si só, defender suas causas. E aí, para que serve a política, se o encontro é improvável ou impossível?
O mercado, com sua mão invisível, que anunciava ser capaz de sozinho comandar o espetáculo da construção humana, hoje é um ator secundário, sem prestígio. Não dá conta nem de gerar riqueza suficiente para distribuí-la, se não de forma igual, ao menos de forma justa, entre todos os figurantes. Hoje, tem mais gente no banco de reserva do que no campo jogando, como diria Lula. E eu acho é que tem mais gente na geral, só assistindo ao jogo de longe, do que preparado para entrar em campo. Hoje o mercado atende basicamente 10% da população. Os demais são atendidos pela pirataria que navega em mar aberto, sem nenhum controle, vendendo até remédio falsificado!
As oportunidades iguais, que o mercado um dia prometeu criar, para que cada um, de seu próprio jeito, encontrasse diferentes caminhos para se afirmar nesse mundão, foram distribuídas só para os amigos do rei. Os demais estão aí, jogando coquetel molotov no carro dos outros ou encostando caco de vidro no pescoço alheio, quando não um trezoitão, por conta de uns cinquentinhas ou um celular com microchip. Os velhos, eles nem querem saber. Outro dia, tomaram o celular do Daniel. Viram que era um modelo antigo, chamaram ele de volta e devolveram. Acharam ruim ainda. Ói só!
Então, não é a barbárie moderna, sob o comando dos barões da ciranda financeira? Estes sim, são poderosos! Donos, no entanto, de um império virtual, nunca se esqueçam disso!
Mas o que eu fiquei mesmo pensando hoje é se não estaríamos patinando na lama de velhas soluções. Tudo bem, nossos problemas também já estão bem batidos. Não fomos criativos ao propormos novos desafios. Mas o mundo em que estamos vivendo hoje é muito diferente daquele de trinta anos atrás. Isso eu sei que é. Sou testemunha ocular da história (rs). Pois não estamos num mundo, agora sim, globalizado? As informações hoje não circulam o planeta todo em poucos segundos? Uma borboleta que bate as asas no Japão não provoca um furacão nas ilhas da américa central? Não falamos todos a mesma língua do querer mais? Então, não é natural que um argelino se ache francês? Um indiano seja confundido com um mineiro de Governador Valadares? Uma canedense seja parecida com uma chinezinha? E assim por diante?
Será que não teríamos, então, de estar buscando soluções planetárias? Fortalecendo instituições globalizadas, capazes de dar conta da nossa diversidade cultural, mas legitimadas para falar em nome da República Terra? Fiquei pensando nisso, enquando o liquidificador girava na velocidade máxima.
Sonhos estratosféricos para todos.
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