domingo, novembro 06, 2005

Mansos delírios

Quer saber? Enquanto o bush se prepara pra esquentar uma carninha no chapadão do planalto, vou passear no parque. Vou fazer só um desvio para não me esquecer da histórinha que o Cláudio me contou. Ele estava conversando com um motorista de táxi. Pois é, o carro dele continua comigo, hehehe. E não é que as danadas das pastilhas de freio deram de acabar logo quando a jipeira estava na minha mão? Já viram, né? De quem é a culpa? De quem? Que posso eu fazer? Durante a semana não dá para ficar dirigindo, só mesmo pilotando pra não perder a hora. Então freio com vontade mesmo. Mas não acredito que tenha sido meu jeito estranho de dirigir que estragou as pastilhas. Sinceramente, não. O que estava dizendo mesmo?

Ah, sim. Então. O Cláudio estava conversando com o motorista de táxi e os dois comentavam a vinda de bush ao Brasil. bush mesmo, aquele que não assinou o Protocolo de Kioto. E vai daí que um falou mal do moço, o outro criticou também, o um endossou e o papo rolou. Nessa engrenada, um deixou escapar que bush seria o líder mundial. E é, né? Mas que líder que nada, desqualificou o outro. Líder que é líder de fato não sai por aí afora distribuindo a morte pra seus vizinhos, oferece é um ombro, a mão, um lugar na mesa, alimento para fomes diversas e outras cositas más, pero desde de que não façam mal a ninguém, pelo contrário, elevem é os pontos de vida dos parceiros de jogo. Ponto, parágrafo.

Então fui. Vamos passear no parque, wôu wôu. Fui andar. Vichi! Houston, temos problemas. Ainda não tinha contado essa, mas acontece que tenho outra mania. Quando preciso pensar alguma coisa e não estou me concentrando bem, gosto de sair andando por aí. Ajuda muito. Então, já viram, né? Na virada da primeira travessa, algumas idéias foram se juntando a outras e formaram um pensamento do porte de uma tsunami. Quase me jogou de cara no tronco de uma árvore que, distraída, não vi.

Foi assim, ó: estava andando e ouvindo George Moustaki. Avec ma guele de métèque/De juif errant de pâtre grec/Et mes cheveux aus quatre vents/Avec mes yeux tout délavès/Que me donnent l’air de rêver/Moi qui ne rêve plus souvent...Aí pensei nas ruas de Paris, por onde gosto de passear, quando estou plugada. Imediatamente, me afastei do centro e acabei saindo pela periferia e caindo no coração de Seine-Saint-Deni.

Foi daí que dei de cara com a futura geração. Ela me olhava com olhos estatelados, como alguém que não enxerga mais nada a sua frente. Estendia as mãos vazias bem debaixo do meu nariz, como se esperasse que dele escorresse algum projeto de vida mais digno do que este que traz acorrentado a seus pés. Balançava a cabeça de um lado para o outro, como que tentando se enquadrar no foco dos meus olhos. Agitava os braços e pulava na forma de polichinelos, bem ritmados, como alguém que pede encarecidamente para ser visto. E eu via, só não enxergava. Exausta, a futura geração se afastou e depois não vi mais nada.

Vai que o que me veio à cabeça foi só uma seqüência de números: 70, 180, 240, 700, 900 e assim por diante. Tantos quantos foram os carros incendiados nas ruas de Paris e entorno, nos últimos 10 dias. Não foram vândalos. Acho que não. Preciso avisar Villepin. Acho que vi quem foi. Foi a futura geração dando um toque para ser lembrada. Foram só meninos, crianças ainda, filhos dos relegados, dos repudiados, dos banidos, também chamados excluídos, mas que, de uma forma mesmo que meio desajeitada, estão sim tão dentro quanto todos os demais. Incluídos até a medula. Ainda que alguns não os vejam e garantam que eles estão é de um lado de fora, se isso existe.

Antes de ouvir as vozes de Dani e Rafael – olha, que vai bater! – ainda tive tempo de me lembrar de Viviane Forrester. Acho que ela também viu a futura geração destrambelada, andando solta por aí. Bem antes de mim, claro, lá pelos idos de 1996. Ela terminou o seu Horror Econômico com uma perguntinha básica: seria insensato esperar, enfim, não um pouco de amor, tão vago, tão fácil de declarar, tão satisfeito de si, e que se autoriza a fazer uso de todos os castigos, mas a audácia de um sentimento áspero, ingrato, de um rigor intratável e que se recusa a qualquer exceção: o respeito?

E aí parei, a menos de um palmo do tronco da árvore. De volta para casa, não sei porquê, me deu uma vontade danada de implicar por implicar. Implicar que nem a Bibizinha da piada. Tava ela lá, na porta do colégio. Aí viu o sorveteiro e foi lá: tem sorvete de jiló? Tem não minina! Ói só! No outro dia, terminou a aula e lá estava a Bibizinha de novo: tem sorvete de jiló? Tem não minina, já falei! Mais um dia e a mesma coisa. Na sexta-feira, o sorveteiro pensou: vou fazer uma criança feliz! Daí a pouco chega a Bibizinha: tem sorvete de jiló? Tem sim. E a Bibizinha: Eeeeca!

Sonhos atormentados, mas um alegre despertar para todos!
E, ainda assim, gracias a la vida!

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