terça-feira, março 14, 2006

O mundo é outro

Estava divagando no volante, entre um rap e um rock, quando um dos meninos mexeu no rádio e passou pela CBN . Ouvi distraidamente a jornalista Miriam Leitão comentar os desafios que a China terá de enfrentar no daqui pra frente. Naquele instante ela falava do desemprego, que já começa a querer se transformar em problema, numa das maiores economias do mundo. É um paradoxo, se pensarmos que a China cresce a galope e, como portadora da síndrome de gigantismo, deveria ter um mercado de trabalho capaz de abrigar um mundão de gente.

Olha só, outro dia mesmo, ouvi também no CBN Brasil que a China produz 9 bilhões de pares de sapatos por ano e exporta quase 6 bilhões, um para cada habitante do planeta. Só essa indústria calçadista já deve empregar um exército inteiro de chinezinhos, um tanto equivalente ao tamanho do mercado de trabalho formal brasileiro. Mas as coisas nem sempre são o que parecem. O mundo é outro e as condições de acolhimento desta mão de obra, pra lá de abundante, são bem diferentes daquelas que tivemos por aqui, por exemplo, no início da nossa industrialização.

No último fim de semana, enquanto lavava uns pratos e refogava uma carne para tentar um cozido português, o Cláudio resumia pra mim os momentos mais emocionantes de um livro que ele estava lendo. Aliás, leiam! Chama-se A cultura do novo capitalismo, de Richard Sennett, da Editora Record. Sennett relatava o espanto de Weber com a grande sacada de Bismarck sobre a organização interna das corporações, reproduzindo a forma de uma pirâmide. Quanto mais alto na cadeia de comando, menor o número de pessoas no controle. Em contrapartida, quanto mais descemos nessa escala de poder, maior o número de pessoas incluídas na organização.

Pois então, Bismarck incluiu na sua proposta de pacto social para os operários alemães a promessa de um lugar para todos no sistema social. E fez isso, porque sacou que a forma da pirâmide permitia que uma corporação agregasse um número cada vez maior de indivíduos nas camadas mais baixas do seu organograma, abrindo oportunidade para inclusão de todos. “A obstinada justificativa de Bismarck para a sistemática engorda das instituições era a pacificação, a tentativa de evitar conflitos, assegurando um lugar para todos e cada um dentro do novo sistema” - como escreveu Sennett. Mais do que garantir eficiência às organizações, buscava-se com o crescimento da burocracia, garantir a inclusão social de uma massa de desempregados que se deslocava do campo para os incipientes centros urbanos num ritmo cada vez mais intenso.

E assim foi. Mas não é mais. Hoje vivemos sob o signo da globalização. Por uma série de razões que não vou ficar aqui descrevendo, mas que conhecemos bem, pois vivemos esse momento, das reengenharias, da revolução tecnológica, da automação, do imperativo do curto prazo, do domínio do capital impaciente, vulgarmente conhecido como especulativo, e de outros fenômenos que atingiram em cheio as organizações, elas acabaram mundando. A pirâmide foi desmontada para dar lugar a uma estrutura quase horizontalizada. E o chão de fábrica virou uma plataforma futurística, habitada por máquinas e robos que dependem cada vez menos dos trabalhadores presenciais. Já ouvi muita gente boa falando que o trabalho não vai acabar nunca, mas emprego, esqueçam. Este já era.

Se a China está entrando de sócio no mercadão global, é claro que vai acompanhar as tendências do momento. Não vai querer perder tempo percorrendo um caminho já mapeado por todos. E aí? Aí, fico pensando que o desemprego não será só um desafio para a economia chinesa, mas um problemaço que ela terá de enfrentar com muita criatividade. Isso se não quiser ver os seus jovens perdidos por aí. Lembram-se do Brasil? São 27% dos jovens brasileiros entre 15 e 27 anos que estão perambulando por aí, sem ter o que fazer. São 1 milhão e 700 mil meninos e meninas que estão em casa, vendo televisão, ou na rua sem nada de bom para pensar. E cabeça vazia, oficina do diabo, como dizia minha vó.

Onde estão esses meninos e meninas? Para onde vão os chinezinhos que não conseguirem ingresso para o espetáculo do crescimento da economia chinesa? Aí é que está.

Tenham um boa noite de descanso e aproveitem, porque amanhã nós ainda podemos labutar

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