sexta-feira, outubro 13, 2006

Sopa de letrinhas

Trilha falada: Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães. Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas.

Estava fechando o portão da garagem ontem à noite e fui interceptada pela minha vizinha da direita. Digo, da casa que fica logo à direita daquela onde moro. Preparei o espírito. Achei que ela vinha se queixar do ser arbóreo que habita nossa calçada e que deu muito trabalho nas duas últimas semanas. Espalhou folhas pela rua inteira. Muitas. Imaginem muitas mesmo, meninas. Foi muito mais. Mas já esperava por isso e armei-me de bons argumentos para acalmá-la. Só que não era essa a pauta do dia. Ela estava em plena campanha. Queria conquistar meu voto para Geraldo.

Confesso, fui surpreendida. Mas claro que evitei dizer não. Sou distraída, mas não jogo pedra em ninguém. Tentei apenas argumentar que São Paulo merece Lula, depois de ter nos devolvido Paulo Maluf. Ela, militante aguerrida, não cedeu e continuou sua investida em favor de Geraldo. No final, concordamos, as duas, que precisamos pensar muito até o final do mês. Concordamos também nas nossas dúvidas: qual é, de fato, o valor das palavras no discurso de cada um deles? E tão importante quanto, o significado de cada uma delas? Será que estamos todos falando a mesma língua? Tem horas, meninas, que desconfio que não. Será que o que um fala o outro entende? Será que eles têm noção do que dizem? Será que estão falando exatamente o que pensam ou pensam uma coisa e falam outra? Será que o que entendemos do que dizem é mesmo o que estão falando?

A concretude das letras
A conversa foi ficando tão etérea para uma sexta enforcada que começamos a desconfiar de que nem nós estávamos mais nos entendendo e resolvemos simplificar. Ali, em pé, na beira do portão, passamos a falar da concretude das palavras. A minha vizinha da direita, a boca pequena, queixou-se dos netos que estariam aniquilando a língua portuguesa. Recebeu um e-mail de um deles, que mora em Brasília, e quase precisou de um tradutor. Aqui virou aki; não é naum; você (vê se pode, não usam mais senhora!), mas você, é vc; e falou é flw. Olhem que drama. Onde vamos parar? – ela me perguntou, querendo respostas.

Para ganhar tempo, devolvi com uma pergunta. Quem me contou essa garantiu que a questão apareceu numa prova de concurso. Tasquei, na lata. Como se escreve, na forma aportuguesada, a palavra mozzarela? Minha vizinha, como eu, não teve dúvida: mussarela, uai! Errado. Não é. É muçarela, conforme dita o dicionário. Ela ficou pasma e indignada ao mesmo tempo. Não pode! Não pode! E voltamos a concordar. A escrita é uma convenção e se todo mundo escreve mussarela, o certo é mussarela. Então ficou mais fácil convencê-la de que os atentados cometidos contra a língua portuguesa são apenas tentativas de simplificá-la, tornando-a mais acessível. De um certo jeito, é um movimento pela democratização da escrita.

Não inventei isso. Só usei o mesmo argumento dos gramáticos do início do século XX. Naquela época, segundo li num dos números da revista Língua Portuguesa, da editora Segmento, eles iniciaram uma verdadeira guerra para restabelecer a ortografia fonética. Com alguns padrões, claro, porém mais simplificados do que os da chamada ortografia pseudo-etimológica. Essa havia surgido ainda no Renascimento, com o objetivo sublime de elevar a língua portuguesa a um status de língua culta, com um padrão clássico.

Foi nesse período que tipografia, virou typographia, farmácia, virou pharmacia, caos, virou chaos e outras extravagâncias mais. Os grupos ch (com som de k), ph, rh e th eram os blue chips do mercado ortográfico, supervalorizados. O retorno à simplicidade ortográfica não foi uma tarefa fácil. Pelo contrário, sofremos muitas idas e vindas, resistências e bombardeios, negociando sempre em duas frentes: internamente, com nossos gramáticos e com os nobres membros da Academia Brasileira de Letras e, externamente, com os patrícios portugueses. Só em 1938, o sistema ortográfico simplificado foi restabelecido.

Uma batalha estava vencida. Faltava limpar o front externo. O acordo de uniformização da ortografia brasileira e portuguesa foi assinado em 1943. De lá pra cá, foi atualizado apenas uma vez, em 1971, durante o governo Médici, com a assinatura de um novo decreto, incluindo pequenas alterações no acordo. E é esse que vigora até os nossos dias. Sem nenhuma outra revisão.

Isso é bom com macarrão
Se é assim, ouso dizer que mussarela se escreve mesmo é com /ss/, pois, por essa convenção, o /ç/ deve ser usado apenas em palavras de origem tupi, o que, definitivamente, não é o caso de mozzarela, indiscutivelmente uma palavra de origem italiana. Já estávamos quase terminando o nosso tricô, quando minha vizinha da direita quis saber então se todos os países de língua portuguesa já adotam esse padrão. Aí é outra história, não é não? A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) ainda está conversando, conversando...um dia chega a um consenso. Está como nós, eleitores, conversando, conversando...

Enquanto isso, vai jogando futebol, pra ver se se entrosa mais. Mas a fome de bola do Brasil e agora, na era pós-Filipão, de Portugal também é tão grande, que acho cada vez mais difícil chegarmos a um rápido acordo. Nos Jogos da Lusofonia, de futsal, que estão acontecendo agora, Portugal e Brasil derrotaram de forma humilhante um dos mais novos membros da CPLP, o jovem Timor Leste.

Segundo Sardenberg, no CBN Brasil de hoje, Portugal derrotou a equipe novata do Timor Leste por 59 ou 56 x 0 e o Brasil eliminou o time do torneio com uma goleada de 76 x 0. Uau! Os rapazes capricharam. A torcida agradece e os gramáticos, lingüistas, professores, escritores e todos os que lutam desesperadamente pela unificação da língua portuguesa dão um sorriso amarelo e suspiram impacientes para mais essa tentativa frustrada de confraternização. Exatamente como nós, eleitores, ao final de cada debate.

Um restinho de feriadão ou feriadaum na mais doce e santa harmonia ou armonia, se é que vocês me entendem, meninas.

Tiau, tchau, tial, tchiau, txchau, tixau!

2 comentários:

Dazideia disse...

Não me enquadro no gênero "meninas", mas achei o texto muito interessante.

patricia duarte disse...

Valeu, Dazideia! Volte sempre que quiser. Tô indo agora, mas depois volto para retribuir a visita.