Trilha alternativa: Bom dia!, com Zizi Pozzi, pois até hoje só ouvi com ela mesma.
Do alto da mesa três tigres tristes me espreitam. Terei de devorá-los antes que me decifrem. Mas vou deixar pra depois. Agora não é hora de trabalhar. Prefiro pensavaguear. Justamente. Fazia isso, enquanto terminava de lavar a louça do almoço. Tentava me lembrar quais foram as pessoas que mais me influenciaram na vida e que nunca existiram. Essa é também uma forma de me decifrar, antes que os três tigres tristes o façam. Se não é que, antes disso, eu mesma irei devorá-los.
O caubói do Marlboro é o campeão dos campeões entre as personagens que tiveram maior influência na formação do comportamento da sociedade mundial, nos últimos dois séculos. E ele nunca existiu. Vi isso na resenha de um livro que deve estar chegando por aí, listando as 101 Pessoas mais Influentes que Nunca Viveram. Os três autores americanos destacam ainda nesse ranking Papai Noel; o Grande Irmão, personagem do livro 1984 de George Orwell; o Rei Arthur; e, mais para o fim da lista, a detestável Barbie, o Patinho Feio, Batman e James Bond, o Agente 007.
Não vou contestar. Devem saber o que estão dizendo. Mas posso garantir que nenhuma delas exerceu influência alguma no meu jeito de ver e de estar no mundo. Não essas. Podem existir outras que me capturaram sorrateiramente, enquanto estava distraída, me estranhando num espelho ou no reflexo de uma vitrine, em plena avenida Afonso Pena.Com certeza existiram outras que me pegaram pelo pé, enquanto sonhavagueava, deitada no sofá da sala, lendo um livro ou vendo televisão. Existiram. Agora estou certa disso.
Até hoje luto ferozmente para me livrar da má influência da formiga e da cigarra, personagens de uma das fábulas de La Fontaine, que li fascinada e, ao mesmo tempo, aterrorizada, num dia de Natal. Não foi a modernidade que me levou para o mercado de trabalho. Não foi mesmo. Foi a formiga que me condenou. E ela não existiu, mas lá, naquele dia, apavorada com o meu triste destino de criança-cigarra feliz, tomei a decisão de que, quando crescesse, seria qualquer coisa, mas, antes de tudo, seria uma trabalhadora incansável. E tenho sido. Não é fácil nos livrarmos de influências tão enraizadas.
Também peguei da formiga a mania de juntar coisas. Guardo qualquer traquitana que amanhã possa ter alguma utilidade. Um pedaço de barbante, papéis de presente, fitas coloridas, clips que encontro perdidos no meio da rua, botões, pés de meia solteiros, roupas que não nos servem mais, embalagens reaproveitáveis, fios, conectores, tudo que um dia, num inverno da vida, poderá virar outra coisa de grande valia. Até papel com um lado em branco, guardo para rascunho. Guardo, embora nunca me lembre de usá-los quando vou escrever qualquer bobagem. Mas é a praga da formiga.
É dela que tirei essa crença: na vida, ou você trabalha ou você se diverte. E se trabalha, não se diverte e, se se diverte, não tem como trabalhar. E outras lições penosas: só terá recompensas na vida, se trabalhar muito. Se preferir se divertir, vai dançar. Eu me lembro muito bem: Ah, cantavas! Então agora dance! – foi o que a formiga disse. Mas hoje, ainda que tarde, já me permito ser uma forgarra ou uma cimiga, sem dor na consciência.
Antes disso e durante um bom tempo, penei amargamente esperando o dia em que estaria pronta para lutar pela minha sobrevivência. Só aliviei essa carga no dia em que me deixei influenciar por outra pessoa tão forte quanto a formiga de La Fontaine. Ela também não existiu, mas a conheci por acaso, na estante do escritório da minha casa: era uma menina também, de 11 anos e, para mal dos pecados, órfã de tudo e sobrinha de Tia Polly Harrigton, uma mulher intragável que não suportava a luz do sol. Exatamente. Pollyana. Aprendi com ela a minha salvação: o jogo do contente.
Fiquei tão viciada nisso que colecionei uma infinidade de outras personagens que me influenciaram exatamente dessa mesma forma. De Maria, a Noviça Rebelde de Julie Andrews, mais tarde sra. Von Trapp, até o sem medo de ser feliz do PT. A ingenuidade não é de todo mal e funciona bem, se queremos apenas ser feliz na vida. O diacho é que queremos sempre mais e aí o jogo do contente é um obstáculo quase intransponível. Precisamos da raiva e da coragem para mudar alguma coisa nesse mundo. São as filhas da esperança, como dizia Santo Agostinho.
E a raiva e a coragem não aprendemos com ninguém. Tivemos de inventá-las. Claro, inspiradas em histórias de vida reais, misturadas em doses muitas vezes inadequadas, quando não equivocadas, mas sempre suficientes para nos fazer mover, seja pra que lado for, mas mover e sair do conforto do contente. E tiveram outros seres inexistentes que me moldaram, mas três tigres tristes me encaram do outro lado da mesa. Acho melhor parar por aqui e devorá-los logo, antes que me desvendem.
Que os astros conspirem a favor de todos vocês neste final de semana, livrando-os das más influências que pairam sobre o planeta.
Hasta la vista e un belo día.
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