domingo, outubro 29, 2006

Crescer é...

Trilha alternativa: Cio da Terra, com Milton Nascimento, claro, não é não?

Ufa! Custei, mas votei. Teclei na última hora, mais por obrigação do que por convicção. Mas isso não tem a menor relevância na contagem final dos votos. O que importa realmente é que eles estejam ali. E o meu voto está. Foi não querendo ir, mas foi. Uma hora teclava em um e cancelava. Outra hora teclava é no outro e cancelava. Às vezes teclava patinhos e cancelava. Até o mesário ficou preocupado, começou a me rodear com uma cara meio cismada. Não o recrimino, afinal levei mais de 50 segundos para me decidir. E fiquei muito à vontade mesmo, porque nem fila tinha na minha seção.

Pronto. Agora passou o tempo da divergência, devemos entrar na temporada da convergência. O que será conciliável nos dois discursos oferecidos aos eleitores, durante a estação de caça aos votos? As reformas, com certeza, vão aparecer na pauta de governo do candidato vitorioso, seja ele quem for. Isso ficou bem claro durante os debates. Reforma tributária, fiscal, da previdência, trabalhista, política e assim por diante. Resta saber a prioridade que vão receber, o ritmo com que vão caminhar e os pontos que serão mais enfatizados nas mudanças. Mas, até agora, tirando a idade mínima para a previdência, que Alckmin se disse contrário, vi poucas divergências entre um e outro. A Folha concorda comigo. O PSDB até chegou a pregar a redução da carga tributária, mas não acredito, com sinceridade, que eles seriam capazes disso.

E o que fica claro nisso tudo, lamentavelmente, é que deverá permanecer, ao longo dos próximos quatro anos, a preponderância da economia sobre as políticas sociais. Alguém já me disse uma vez que a economia não é uma ciência, mas uma ideologia disfarçada. Parece que é mesmo e compartilhada pelas duas forças que disputavam a presidência no Brasil. O grande debate, relevantíssimo, que prevaleceu na fala dos dois candidatos é a necessidade de acelerar os índices de crescimento da economia brasileira. Para Alckmin, essa fala vinha como uma denúncia, apesar de em oito anos de FHC o índice não ter sido muito diferente. Para Lula, vinha como uma promessa. Já crescemos, mas vamos crescer mais! – repetia.

Crescer. Esse é o verbo. Mas tenho um poço de dúvidas sobre a sua conjugação. Primeiro, desconfio de todos os exercícios estatísticos comparativos feitos sobre o desempenho da economia brasileira em relação ao dos demais países emergentes ou não. O que representa um índice de 2% na economia brasileira e um de 6%, por exemplo, numa economia como a do Uruguai? O que representa os mesmos 2% numa economia que vem crescendo continuamente e 5% numa economia que saiu do fundo do buraco. Não acho que sejam grandezas comparáveis, mesmo o Cláudio dizendo que são.

Depois, já estou ficando empanturrada com essa perspectiva ad infinitum de crescer, crescer, crescer, até não sei onde mais crescer. Crescer muito. Fico pensando que essa máxima do mercado vai trombar, qualquer hora dessas, com seus limites. Se já não está. Semana passada, a organização ambiental WWF divulgou o seu relatório Living Planet Report, denunciando que já estamos usando recursos naturais a uma taxa 25% maior que a capacidade do planeta de regenerá-lo.

De novo, o ano de 2050 é o limite-referência. Se continuarmos a crescer neste mesmo ritmo, quando chegarmos lá, em 2050, a humanidade precisará de duas Terras para prover suas necessidades. Vou copiar o relatório: desde meados dos anos 80, a humanidade não está mais vivendo dos juros da natureza, mas esgotando seu capital. E é aí é que está. Desconfio que nos estrepamos. O mundo cresceu desarvoradamente desde os anos 50 para cá, mas sempre para os mesmos. Essa obsessão resultou na proliferação mais do que desenfreada de uma pobreza em série, nos mais diversos cantos do mundo. Além da fome, que é uma conseqüência natural desse modelo, a pobreza provocou boa parte dos desastres ambientais que assistimos hoje e alimenta gordamente as estatísticas da violência.

Para reverter a curva da pobreza, não acredito que tenhamos, como única opção, de continuar a crescer, crescer, crescer. Vamos ter é de cortar o muito. Até para garantir a sobrevivência do planeta. E crescer mais devagar. E aprender rapidamente a distribuir, distribuir, distribuir. Só assim a China vai conseguir resgatar da miséria, sem comprometer a qualidade do meio ambiente, os 800 milhões de chinezinhos que ainda estão no campo. E olha que a China explodiu de crescer nos últimos anos. Só assim nós, aqui mesmo, vamos conseguir incluir os nossos milhões de pobrezinhos, que andam por aí, pelos sinais de trânsito, pelas esquinas, por aí. É nisso que estou pensando neste finalzinho de domingo.


Estou seriamente desconfiada de que se não convergirmos agora, caminharemos desembestadamente para extinguirmos do planeta esse tal do bicho-homem.


Um restinho de domingo no descanso merecido e uma semana plena de entendimentos para todos.

Buenas.

terça-feira, outubro 24, 2006

E se?

Trilha alternativa: O Samba do Crioulo Doido. Com quem mesmo?

E se o vento não tivesse batido meio atravessado e desviado a trupe de Cabral para a costa brasileira? Como seríamos? Como teriam nos deixado ser?

E se não tivesse dado na telha de D. João III de copiar o sistema de colonização implantado nos Açores, dividindo as terras brasileiras em 14 capitanias hereditárias? Se não tivesse concedido esses lotes a membros da burocracia e a militares e navegadores? E se, diferente do que foi, esses donatários tivessem vindo por aqui ao menos para bater o ponto? Seríamos melhores ou piores do que somos?

E se os bandeirantes paulistas não tivessem se transformado em milícias paramilitares e, contrariando a lei, não tivessem saído Brasil adentro escravizando índios? Quando não simplesmente exterminando-os? E se os bandeirantes paulistas não tivessem inaugurado uma civilização própria, fundamentada na temeridade e na cobiça? Seríamos mais felizes? Ou seríamos mais perdidos?

E se não tivéssemos sido contaminados pela febre do ouro? Se os rios não tivessem sido desviados para facilitar a catagem do ouro? Se os paulistas não tivessem sido liberados pela Coroa para iniciar o comércio de africanos para abastecer de mão-de-obra barata as minas das Gerais? Seríamos menos alegres? Cantaríamos menos? Dançariamos mais desajeitados?

E se Joaquim Silvério dos Reis não fosse um endividado aloprado e não tivesse denunciado a já gorada conjuração mineira? E se a elite endinheirada da província mineira, que liderava o movimento, não tivesse dado com os burros n'água? Se tivesse conseguido fundar a República de Minas? O Brasil teria aderido? Ou seríamos divididos em pequenas republiquetas da banana?

E se D. Pedro tivesse sido abatido pela diarréia que contraiu às vésperas do famoso 7 de Setembro e não tivesse tido forças para chegar às margens do Ipiranga? José Bonifácio Andrada daria o grito em seu lugar? Ou o povo se banharia nas águas do rio? Isso nos tornaria menos subservientes ou mais dependentes?

E se? E se?

E se os golpistas civis e militares não tivessem, na calada da noite, longe do cheiro do povo, em silêncio e provisoriamente, proclamado a nossa república? E se o referendo a república não tivesse demorado 104 anos, depois dela já proclamada, para ser convocado? Os espíritos estariam mais armados? E se o povo, paciente, tivesse costurado o movimento e construído a república, no momento em que a monarquia caia de podre? Teríamos uma noção melhor das coisas públicas e privadas? Saberíamos diferenciá-las com mais competência?

É tanto se nessa história que cansei. Vou pular algumas paradas da linha do tempo. E se Getúlio não tivesse insônia? E se tivesse atirado pro alto ao invés de acertar o seu coração? E se JK tivesse mais cinco anos? E se Jânio não tivesse renunciado? E se Jango tivesse mais tino? E se os militares não tivessem se apegado ao poder? E se o Dante de Oliveira tivesse trabalhado melhor a sua base parlamentar? E se Tancredo não sofresse de diverticulite? E se Collor não fosse uma farsa? E se FHC fosse só um acadêmico? Seriamos um país melhor ou pior? Estaríamos no 1º, 2º, 3º ou 4º mundo?

E se Lula tivesse conseguido um bom emprego no ABC paulista? E se não tivesse se acidentado no trabalho? E se não gostasse de política? E se não tivesse conquistado a presidência em 2002? E se não tivéssemos o instituto da reeleição? E se Alckmin não fosse um chuchu? E se Alckmin fosse Serra? E se Alckmin fosse Aécio? Estaríamos mais conformados ou mais revoltados? E se....?

E se essa noite a lua iluminar nossos sonhos? E se as estrelas descerem a rampa do céu para brilhar ao lado da nossa cama? E se nosso anjo da guarda fizer sentinela a noite toda e não deixar que nada de mal nos aconteça? Estaremos mais contentes amanhã ou menos desiludidos?

Até de repente!

domingo, outubro 22, 2006

Espelho, espelho meu

Trilha alternativa: Bom dia!, com Zizi Pozzi, pois até hoje só ouvi com ela mesma.

Do alto da mesa três tigres tristes me espreitam. Terei de devorá-los antes que me decifrem. Mas vou deixar pra depois. Agora não é hora de trabalhar. Prefiro pensavaguear. Justamente. Fazia isso, enquanto terminava de lavar a louça do almoço. Tentava me lembrar quais foram as pessoas que mais me influenciaram na vida e que nunca existiram. Essa é também uma forma de me decifrar, antes que os três tigres tristes o façam. Se não é que, antes disso, eu mesma irei devorá-los.

O caubói do Marlboro é o campeão dos campeões entre as personagens que tiveram maior influência na formação do comportamento da sociedade mundial, nos últimos dois séculos. E ele nunca existiu. Vi isso na resenha de um livro que deve estar chegando por aí, listando as 101 Pessoas mais Influentes que Nunca Viveram. Os três autores americanos destacam ainda nesse ranking Papai Noel; o Grande Irmão, personagem do livro 1984 de George Orwell; o Rei Arthur; e, mais para o fim da lista, a detestável Barbie, o Patinho Feio, Batman e James Bond, o Agente 007.

Não vou contestar. Devem saber o que estão dizendo. Mas posso garantir que nenhuma delas exerceu influência alguma no meu jeito de ver e de estar no mundo. Não essas. Podem existir outras que me capturaram sorrateiramente, enquanto estava distraída, me estranhando num espelho ou no reflexo de uma vitrine, em plena avenida Afonso Pena.Com certeza existiram outras que me pegaram pelo pé, enquanto sonhavagueava, deitada no sofá da sala, lendo um livro ou vendo televisão. Existiram. Agora estou certa disso.

Até hoje luto ferozmente para me livrar da má influência da formiga e da cigarra, personagens de uma das fábulas de La Fontaine, que li fascinada e, ao mesmo tempo, aterrorizada, num dia de Natal. Não foi a modernidade que me levou para o mercado de trabalho. Não foi mesmo. Foi a formiga que me condenou. E ela não existiu, mas lá, naquele dia, apavorada com o meu triste destino de criança-cigarra feliz, tomei a decisão de que, quando crescesse, seria qualquer coisa, mas, antes de tudo, seria uma trabalhadora incansável. E tenho sido. Não é fácil nos livrarmos de influências tão enraizadas.

Também peguei da formiga a mania de juntar coisas. Guardo qualquer traquitana que amanhã possa ter alguma utilidade. Um pedaço de barbante, papéis de presente, fitas coloridas, clips que encontro perdidos no meio da rua, botões, pés de meia solteiros, roupas que não nos servem mais, embalagens reaproveitáveis, fios, conectores, tudo que um dia, num inverno da vida, poderá virar outra coisa de grande valia. Até papel com um lado em branco, guardo para rascunho. Guardo, embora nunca me lembre de usá-los quando vou escrever qualquer bobagem. Mas é a praga da formiga.

É dela que tirei essa crença: na vida, ou você trabalha ou você se diverte. E se trabalha, não se diverte e, se se diverte, não tem como trabalhar. E outras lições penosas: só terá recompensas na vida, se trabalhar muito. Se preferir se divertir, vai dançar. Eu me lembro muito bem: Ah, cantavas! Então agora dance! – foi o que a formiga disse. Mas hoje, ainda que tarde, já me permito ser uma forgarra ou uma cimiga, sem dor na consciência.

Antes disso e durante um bom tempo, penei amargamente esperando o dia em que estaria pronta para lutar pela minha sobrevivência. Só aliviei essa carga no dia em que me deixei influenciar por outra pessoa tão forte quanto a formiga de La Fontaine. Ela também não existiu, mas a conheci por acaso, na estante do escritório da minha casa: era uma menina também, de 11 anos e, para mal dos pecados, órfã de tudo e sobrinha de Tia Polly Harrigton, uma mulher intragável que não suportava a luz do sol. Exatamente. Pollyana. Aprendi com ela a minha salvação: o jogo do contente.

Fiquei tão viciada nisso que colecionei uma infinidade de outras personagens que me influenciaram exatamente dessa mesma forma. De Maria, a Noviça Rebelde de Julie Andrews, mais tarde sra. Von Trapp, até o sem medo de ser feliz do PT. A ingenuidade não é de todo mal e funciona bem, se queremos apenas ser feliz na vida. O diacho é que queremos sempre mais e aí o jogo do contente é um obstáculo quase intransponível. Precisamos da raiva e da coragem para mudar alguma coisa nesse mundo. São as filhas da esperança, como dizia Santo Agostinho.

E a raiva e a coragem não aprendemos com ninguém. Tivemos de inventá-las. Claro, inspiradas em histórias de vida reais, misturadas em doses muitas vezes inadequadas, quando não equivocadas, mas sempre suficientes para nos fazer mover, seja pra que lado for, mas mover e sair do conforto do contente. E tiveram outros seres inexistentes que me moldaram, mas três tigres tristes me encaram do outro lado da mesa. Acho melhor parar por aqui e devorá-los logo, antes que me desvendem.

Que os astros conspirem a favor de todos vocês neste final de semana, livrando-os das más influências que pairam sobre o planeta.

Hasta la vista e un belo día.

terça-feira, outubro 17, 2006

O que é que esse cara tem?

Meninas, esse cara tem um problema. Deve ter nascido careca, sem dentes e com dificuldades para falar. Só pode, porque uma pessoa assim não é normal. Ou então, não teve infância. Não teve um cachorro quando era menino! Não amarrou besouro na caixa de fósforo, não deu banho em gato, não cortou asa de passarinho e todas essas maldades que menino faz, só por curiosidade, sem nenhuma intenção de maltratar o bichinho. Deve ter sido isso. Ou coisa pior. Mas ele tem um problema.

Sabem aquele, que não assina o Tratado de Kioto nem que chova canivetes na sua horta? Pois é. Finalmente, tirou a bic do bolso. Melhor que não tivesse tirado. Mas tirou. E decretou um retrocesso histórico de algumas centenas de anos para todo o resto da humanidade. O danado do bush, pegou a sua bic para assinar uma polêmica lei antiterrorismo, que lhe dá agora, de fato, poderes de imperador. Doravante, bush tem autorização do Congresso Americano (ô congressinho, hem?) para, por exemplo, interpretar normas internacionais sobre tratamento de prisioneiros.

Sabem o que isso significa? Que as convenções de Genebra, assinadas por todos nós, inclusive pelo próprio Estados Unidos, viraram letra morta. Não foi outra coisa que aconteceu. Pois, doravante, essas convenções poderão ter interpretações originais, inspiradas, exclusivamente, no estreito entendimento que aquele tem do mundo. Não mais baseadas na intenção do legislador, no consenso dos juristas, no bom senso que nos orienta a todos quando enfrentamos momentos mais delicados.

Significa, por exemplo, que se bush desconfiar de qualquer distraído que estiver dando sopa nas ruas de Washington D.C. , este Zé mané estará ferrado para o resto da vida. Aquele vai interrogá-lo até o final dos tempos e se o coitado não tiver nada a declarar, poderá sofrer todas as atrocidades do mundo, das mais primitivas às mais tecnológicas, tudo dentro da lei. Vai penar até falar aquilo que aquele quer ouvir. Pau de arara, por exemplo. Se bush achar necessário, pode ser. Afogamento na bacia de alumínio. Se for preciso, tá valendo. Vinte quatro horas ligado num canal evangélico. É sopa no mel! E por aí afora vai. bush é quem vai decidir.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 1948, o nosso primeiro grande projeto de Humanidade, também foi pro lixo, claro! Todos os seus 30 artigos, de um jeito ou de outro, foram despachados para o museu. Acho que não estou exagerando. O artigo 5o., com certeza: A tortura é proibida em toda e qualquer situação. Nenhuma pessoa poderá ser submetida a tratamentos ou punições cruéis, ou capazes de levá-la a se sentir atingida em sua dignidade humana. Esse é até óbvio, não é não?

Não vou copiar toda a Declaração, mas quero citar pelo menos mais um artigo, o 2o: Seus direitos devem ser respeitados por todos, não importa o país onde você nasceu, nem a forma como ele é governado. Você não poderá receber um tratamento diferente, nem ter seus direitos ignorados ou desrespeitados, em razão de sua origem, de sua raça, de sua cor, de seu sexo, de seu idioma, de sua religião ou de suas opiniões ou convicções políticas ou de qualquer natureza. E vai por aí.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é considerada a principal invenção do século XX. Creiam meninas, foi uma conquista muito mais ousada do que qualquer uma destas novas tecnologias que andam sendo vendidas por aí, como os laptops, i-pods e outras bobagens mais. E, pomba, numa canetada aquele, que não assina o Tratado de Kioto, transformou-a em picadinho, no fundo de uma lata de lixo. Esse cara tem um problema. Ou melhor, esse cara é o problema.

Tô indo.

Durmam em paz, apesar de bush, e que o nosso anjo da guarda não nos abandone nesta noite.

Pé de Página
Trilha falada : O capitalismo imperialista está em decadência irreversível, doutor, é um fato. Agora, lembra Rosa de Luxemburg? Ela escreveu que a queda do capitalismo traria o socialismo ou a barbárie. Não vejo indício de socialismo. Palavras proféticas de Paulo Francis, in Cabeça de Negro

sexta-feira, outubro 13, 2006

Sopa de letrinhas

Trilha falada: Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães. Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas.

Estava fechando o portão da garagem ontem à noite e fui interceptada pela minha vizinha da direita. Digo, da casa que fica logo à direita daquela onde moro. Preparei o espírito. Achei que ela vinha se queixar do ser arbóreo que habita nossa calçada e que deu muito trabalho nas duas últimas semanas. Espalhou folhas pela rua inteira. Muitas. Imaginem muitas mesmo, meninas. Foi muito mais. Mas já esperava por isso e armei-me de bons argumentos para acalmá-la. Só que não era essa a pauta do dia. Ela estava em plena campanha. Queria conquistar meu voto para Geraldo.

Confesso, fui surpreendida. Mas claro que evitei dizer não. Sou distraída, mas não jogo pedra em ninguém. Tentei apenas argumentar que São Paulo merece Lula, depois de ter nos devolvido Paulo Maluf. Ela, militante aguerrida, não cedeu e continuou sua investida em favor de Geraldo. No final, concordamos, as duas, que precisamos pensar muito até o final do mês. Concordamos também nas nossas dúvidas: qual é, de fato, o valor das palavras no discurso de cada um deles? E tão importante quanto, o significado de cada uma delas? Será que estamos todos falando a mesma língua? Tem horas, meninas, que desconfio que não. Será que o que um fala o outro entende? Será que eles têm noção do que dizem? Será que estão falando exatamente o que pensam ou pensam uma coisa e falam outra? Será que o que entendemos do que dizem é mesmo o que estão falando?

A concretude das letras
A conversa foi ficando tão etérea para uma sexta enforcada que começamos a desconfiar de que nem nós estávamos mais nos entendendo e resolvemos simplificar. Ali, em pé, na beira do portão, passamos a falar da concretude das palavras. A minha vizinha da direita, a boca pequena, queixou-se dos netos que estariam aniquilando a língua portuguesa. Recebeu um e-mail de um deles, que mora em Brasília, e quase precisou de um tradutor. Aqui virou aki; não é naum; você (vê se pode, não usam mais senhora!), mas você, é vc; e falou é flw. Olhem que drama. Onde vamos parar? – ela me perguntou, querendo respostas.

Para ganhar tempo, devolvi com uma pergunta. Quem me contou essa garantiu que a questão apareceu numa prova de concurso. Tasquei, na lata. Como se escreve, na forma aportuguesada, a palavra mozzarela? Minha vizinha, como eu, não teve dúvida: mussarela, uai! Errado. Não é. É muçarela, conforme dita o dicionário. Ela ficou pasma e indignada ao mesmo tempo. Não pode! Não pode! E voltamos a concordar. A escrita é uma convenção e se todo mundo escreve mussarela, o certo é mussarela. Então ficou mais fácil convencê-la de que os atentados cometidos contra a língua portuguesa são apenas tentativas de simplificá-la, tornando-a mais acessível. De um certo jeito, é um movimento pela democratização da escrita.

Não inventei isso. Só usei o mesmo argumento dos gramáticos do início do século XX. Naquela época, segundo li num dos números da revista Língua Portuguesa, da editora Segmento, eles iniciaram uma verdadeira guerra para restabelecer a ortografia fonética. Com alguns padrões, claro, porém mais simplificados do que os da chamada ortografia pseudo-etimológica. Essa havia surgido ainda no Renascimento, com o objetivo sublime de elevar a língua portuguesa a um status de língua culta, com um padrão clássico.

Foi nesse período que tipografia, virou typographia, farmácia, virou pharmacia, caos, virou chaos e outras extravagâncias mais. Os grupos ch (com som de k), ph, rh e th eram os blue chips do mercado ortográfico, supervalorizados. O retorno à simplicidade ortográfica não foi uma tarefa fácil. Pelo contrário, sofremos muitas idas e vindas, resistências e bombardeios, negociando sempre em duas frentes: internamente, com nossos gramáticos e com os nobres membros da Academia Brasileira de Letras e, externamente, com os patrícios portugueses. Só em 1938, o sistema ortográfico simplificado foi restabelecido.

Uma batalha estava vencida. Faltava limpar o front externo. O acordo de uniformização da ortografia brasileira e portuguesa foi assinado em 1943. De lá pra cá, foi atualizado apenas uma vez, em 1971, durante o governo Médici, com a assinatura de um novo decreto, incluindo pequenas alterações no acordo. E é esse que vigora até os nossos dias. Sem nenhuma outra revisão.

Isso é bom com macarrão
Se é assim, ouso dizer que mussarela se escreve mesmo é com /ss/, pois, por essa convenção, o /ç/ deve ser usado apenas em palavras de origem tupi, o que, definitivamente, não é o caso de mozzarela, indiscutivelmente uma palavra de origem italiana. Já estávamos quase terminando o nosso tricô, quando minha vizinha da direita quis saber então se todos os países de língua portuguesa já adotam esse padrão. Aí é outra história, não é não? A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) ainda está conversando, conversando...um dia chega a um consenso. Está como nós, eleitores, conversando, conversando...

Enquanto isso, vai jogando futebol, pra ver se se entrosa mais. Mas a fome de bola do Brasil e agora, na era pós-Filipão, de Portugal também é tão grande, que acho cada vez mais difícil chegarmos a um rápido acordo. Nos Jogos da Lusofonia, de futsal, que estão acontecendo agora, Portugal e Brasil derrotaram de forma humilhante um dos mais novos membros da CPLP, o jovem Timor Leste.

Segundo Sardenberg, no CBN Brasil de hoje, Portugal derrotou a equipe novata do Timor Leste por 59 ou 56 x 0 e o Brasil eliminou o time do torneio com uma goleada de 76 x 0. Uau! Os rapazes capricharam. A torcida agradece e os gramáticos, lingüistas, professores, escritores e todos os que lutam desesperadamente pela unificação da língua portuguesa dão um sorriso amarelo e suspiram impacientes para mais essa tentativa frustrada de confraternização. Exatamente como nós, eleitores, ao final de cada debate.

Um restinho de feriadão ou feriadaum na mais doce e santa harmonia ou armonia, se é que vocês me entendem, meninas.

Tiau, tchau, tial, tchiau, txchau, tixau!

terça-feira, outubro 10, 2006

Nada disso

Trilha marginal: Inútil, com Ultraje a Rigor (dá-lhe Roger!)

Ia pegar umas ondas por aí, mas não fui. E não indo, vim passear por aqui. Ia só divagar, mas não resisto a uma pauta pronta. Confesso que vi o debate dos presidenciáveis. Foi dureza, num fim de domingo, mas admito, vi tudo até o final. Vocês viram? Que conversa arrevesada, hem meninas? Tá doido siô, fico arriada com esse bate boca sem fim, que não vai a lugar algum. Não presta nem para nos ajudar a decidir um voto. Se é que já não decidimos.

Vou ser franca. Esse discurso denuncista já deu o que tinha de dar na campanha. Cansou. Cansei. E não só eu, mas acho que todos nós eleitores. Agora queremos é mais. Mais qualquer coisa: idéias, propostas, planos, pistas, maquinações, sonhos, qualquer coisa, menos esse lenga lenga, que por mais grave e importante que seja, não os diferencia em nada. Pelo menos não no imaginário do eleitor. Político é político. Em qualquer pesquisa de imagem, ele ocupa sempre a taxa mais baixa de credibilidade junto à opinião pública. Nesse quesito, portanto, acabam se igualando, mesmo sendo homens de bem, como acho que são.

Tem outra coisa que me dá nos nervos: a estupidez geográfica. Achar que o Brasil mora em São Paulo. Não moramos. Às vezes, até gostaríamos. Mas não moramos. Estamos perdidos é no meio de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, que abrigam 5 mil 561 cidades. Estamos é ali, escondidos em uma delas. O Brasil, portanto, é muito maior do que São Paulo. Maior do que São Paulo e Minas juntos. Do que São Paulo, Minas e Rio, todos somados. O Brasil tem problemas e soluções espalhados pra todo lado. Tem necessidades e potencialidades em todo canto. São Paulo é só uma esquina e não um país inteiro. Alguém tem de dizer isso ao Geraldo. Ou então, vamos declarar logo de uma vez a independência de São Paulo e seja o que deus quiser. A parte vira o todo e a confusão se desfaz.

E mais outra coisa: tudo que já está feito, feito está. E será sempre pouco para o muito que ainda temos por fazer. Alguém precisa dizer isso ao Luiz Inácio. Afinal, moramos todos num país de dimensão continental. Quem mandou? Azar o nosso. Morássemos na Holanda, em Portugal ou no Principado de Liechtenstein, tudo seria mais simples. Mas não moramos e aí é que as coisas começam a se complicar. Tudo por aqui é super, hiper, mega mais difícil. Não temos um problema, mas vários. Não temos uma solução, mas um depende repleto de variáveis. Brasil se pronúncia Brasis. Nossa unidade está só na alma.

E outra mais: meu olho não é uma câmara de tevê. Detesto quando olham para mim de dentro de um tubo de imagens. Querem fingir que conversam comigo. Mas não me convencem. Queria ver o Geraldo olhando no olho do Luiz Inácio. Queria ver o Luiz Inácio olhando no olho do Geraldo. Queria vê-los dialogando. Um falando pro outro. Um ouvindo o que outro estava falando. Discordando, retrucando, rebatendo, tropeçando, gaguejando, mas olhando, olho no olho. Era isso que eu queria.

E não só. Queria saber mais. Qual é o diagnóstico de Geraldo para o Brasil-Brasis? Em que pé estamos, ao final deste mandato, hem Luiz Inácio? E então? O que vai ser pra frente? Pra um e pra outro? Por onde vamos? Pra onde vamos? Com quem vamos? Essas são as grandes questões que atormentam meu sono. Espero que me respondam antes do final do mês. Enquanto não, continuo onde sempre estive: ou voto nele, nulo ou nulula. Tá difícil, hem meninas? Como diz o Rafa, a vida é dura assim mesmo, mas no final a gente morre.

Uma semaninha arretada pra todos.

Até mais ver.

quinta-feira, outubro 05, 2006

O que faremos esta noite?

Trilha alternativa: pra ninguém dizer que variei, Dreamland, com Madeleine Peyroux

Meninas, parece que nascemos mesmo para conquistar o mundo. E se nada de errado acontecer ao longo do caminho, tenho a impressão de que já estamos assumindo o comando. Vocês viram a pesquisa do IBGE que está circulando nos jornais de hoje? Quase 30% dos domicílios brasileiros já são chefiados por mulheres. E esse não é um achado pontual, culpa do Lula ou uma seqüela da globalização. É uma mudança no padrão de atividade feminina, como constata a pesquisa.

Já viramos uma tendência, que se consolida a cada nova pesquisa. E uma tendência forte. Só para vocês terem noção do tamanho do estrago que estamos fazendo, de 2002 para 2006, esse percentual cresceu 21% e, pelos números de agosto passado, já éramos quase 3 milhões de mulheres na chefia dos lares brasileiros. Já poderíamos fundar um partido ou uma igreja com sucesso garantido. É brincadeira?

Mas não fiquem prosa, meninas. Ainda falta muito para assumirmos o leme. Essa turma que está nos representando hoje ocupa postos mais precários que o da média da população feminina empregada, com nível de informalidade maior e jornada de trabalho mais longa. Na mesma função, ainda recebe salários mais baixos do que os homens e apresenta menor nível de escolaridade também. Outra coisa, menos grave, essas mulheres são mais velhas que a média de todas nós que estamos por aí, batalhando o pão de cada dia. Ou seja, a situação ainda é dramática, mas estamos chegando lá, não é não?

Acho que o Cérebro deve estar se contorcendo de inveja. Mas acho também que não deveria. Pela pesquisa, a nossa situação, além de dramática, é trágica. Mais da metade das nossas chefes de família mora sozinha com os filhos. Ou seja, rala e pena todos os dias. Outras 25% são casadas e mais ralam que penam. As 18% que faltam para fechar a conta, moram sozinhas e mais penam do que ralam. Ao que parece, estamos todas no mesmo barco. De um jeito ou de outro, quando temos de nos dividir entre a casa, a família e o trabalho, não temos muito opção: ou penamos ou ralamos para dar conta de tudo. Pelejamos, como já disse Dilma. Não é uma queixa, meninas, é só uma constatação, para amenizar a angústia de Cérebro.

No fundo, no fundo, se fosse fazer uma avaliação do resultado dessa pesquisa, faria uma leitura até otimista. Acho que o que esses números nos mostram é que hoje estamos mais corajosas. Antes, fazíamos tudo isso, mas fingíamos que não éramos nós que tocávamos o barco. Agora não. Ficamos também mais confiantes no nosso tino. Mais tolerantes. Abrimos mão da perfeição. Aprendemos a lidar com nossos erros de forma mais amigável. Não nos desesperamos diante da crítica. Não carregamos mais o sentimento de culpa das nossas avós. Ficamos felizes mais vezes ao dia, mesmo sofrendo em dobro, agora preocupadas com o destino de nossos filhos e de todo o mundo. Ficamos mais calmas, ainda que as notícias continuem nos irritando todas as manhãs. Enfim, estamos nos adaptando.

Mas continuamos maquinando nossos sonhos. E se o Pink viesse nos perguntar agora: o que faremos esta noite? Como o Cérebro, responderíamos: o que fazemos todas as noites, meu caro. Vamos tentar conquistar o mundo! Diríamos isso, não diríamos?

Então. Um finalzinho de semana com muitos planos e boas estratégias para todos.

Inté.

domingo, outubro 01, 2006

Querenças

Trilha alternativa: O Quereres de Caetano Veloso, com o próprio, que não tem melhor.

Pronto, votei. Fiz o melhor que pude. Agora vamos mudar de assunto. Vamos para o ano que vem. É lá que já estou. Quero votar de novo. Quero plebiscito para as reformas: política, previdenciária, fiscal e trabalhista. Mas antes, quero um amplo debate sobre as propostas para cada uma delas. Vichi, acho que de eleitora, virei cidadã. Olha que encrenca! Ter de correr atrás de informação, ter de entender de sistemas políticos, sistemas eleitorais, cálculo atuarial, fluxo de caixa, impostos, taxas, contribuições, relação patrão/empregado e essas pinóias todas e ainda arrumar tempo para tudo isso e mais, para participar. Haja hora sobrando!

Mas eu quero. Mesmo que só um pouco, não muito ainda, mas quero. Se é para o bem da democracia, que custa caro mesmo e dá trabalho, vou querer. Já estou querendo. Pronto. E quero também que a imprensa, livre, responsável, inteligente, independente, contribua para esse debate. Que seja capaz de nos fazer entender toda a complexidade dessas mudanças e de mobilizar nosso ânimo para participar de todas as discussões. Assim como faz quando cai um avião, quando uma celebridade dá bandeira na praia, quando um espetáculo de guerra está por acontecer e outras mumunhas mais.

Aliás, quero muito mesmo. Quero o Jornal da República de volta. Olha só do que fui me lembrar, nesse resto de domingo compromissado! E não foi por acaso, claro. Nada acontece desta forma. Intencionalmente, resgatei do alto do maleiro do armário da casa dos meus pais, a minha coleção do Jornal da República. Está encadernada em dois volumes e com letras douradas: Vol I e Vol II. Já nem me lembro porquê fiz isso. O que tinha em mente, quando fui atrás destes jornais vencidos. Mas agora eles me são úteis. Revi página por página dos exemplares que guardei, sem saber pra quê também. E tive saudade não sei do quê. Queria até dizer: bons tempos, hem? - mas não tenho tanta certeza se foram. Então não digo.

Mas quero um Jornal da República de volta, capaz de nos apontar os temas mais importantes do momento, sem a pretensão de querer nos colocar a par de tudo o que acontece aqui e mais em todo mundo. Capaz de nos fazer entender aquilo que é realmente relevante, indispensável e inevitável de que tomemos conhecimento. Capaz de nos ensinar a conectar as editorias para ter um conhecimento pleno, integral, complexo e múltiplo da realidade que nos abocanha em cada esquina. E não essa visão picotada do mundo, que nos é vendida nos intervalos da publicidade e nos espaços em branco, que sobram nos jornais impresso. Quero isso, sinceramente.

E, claro claríssimo, quero que essa turma toda, eleita com meu voto e o de mais alguns milhões de eleitores, tome tino. Pare de brincar com a história e assuma o seu papel com coragem, bravura e espírito altaneiro. Quero que essa turma toda tome fôlego e deixe as águas ligeiras da superfície para mergulhar na profundeza dos nossos desatinos. Como insanos vasculhadores, quero que essa turma revolva todo o entulho que se acumula no fundo dessas águas, até encontrar o fio perdido. O fio com o qual vamos tecer o novo tempo. É só isso que quero.

Já sei que querer não é poder. Que muita querença é sinal de carência. Que quem tudo quer, tudo perde. Mas se mal não faz, se não mata nem engorda, vou continuar assim. Vou querendo.

Agora descansem seus corações em paz, para amanhã recomeçar.

Buenas.