quinta-feira, junho 22, 2006

Espírito esportivo

Não sei tocar nada. Só interfone e olhe lá, dependendo, me atrapalho também. Bola, não toco de jeito nenhum, mas isso não me preocupa. Gostaria mesmo é de tocar um instrumento. Nem que fosse só pra saber se Caetano tem razão: como é bom tocar um instrumento! Tentei duas vezes. Da primeira, radicalizei. Arrisquei, cegamente, aprender logo com partitura e tudo. Foi um fracasso. Da segunda, um amigo se prontificou, com toda paciência do mundo, a me ensinar música por cifras. Essa paciência não durou três meses. Mais tarde, ele admitiu que insistiu porque me achava uma aluna curiosa. Era a única que tocava num tom e cantava em outro. Era o máximo. Acho que ele foi muito delicado comigo.

Mas nunca tentei tocar bola. É claro que já bati muita bola na parede. Com uma mão, com a outra, com as duas, uma palma, duas, três, uma volta e assim por diante. Também fiz controle com meus irmãos, quando faltava jogador e ainda sentei no banco de reserva do time de vôlei do colégio, mas nunca precisei jogar. Nem treinava. Também gostaria de saber jogar bola. Mas sei, desde pequena, que tanto a música quanto a habilidade para um esporte não depende só de vontade. Nem de vocação. Essa, se não nascemos com ela, podemos desenvolvê-la. Com bastante querer, determinação e disciplina, nos tornamos vocacionados para alguma coisa. Mas para a música e o esporte, é preciso mais. É preciso ter o dom.

Não basta tocar bem. Não basta cantar afinado. Não basta jogar corretamente. É preciso por alma em tudo isso. É ela que fisga e prende e envolve e hipnotiza o público. Aliás, como em tudo na vida. O que fazemos por fazer, ninguém percebe. O que fazemos com um querer especial, com alma mesmo, pode até não ser notado por todos, mas nos faz muito mais feliz e fatalmente será percebido por quem está conosco. Por exemplo: não costumo ver uma partida de futebol até o fim. Só um lance ou outro, de passagem. Mas se, nesse momento, a alma está em campo, fico até o final. É irresistível. E só quem tem o dom, consegue escalar a alma para uma partida inteira.

A maioria dos jogadores da seleção brasileira tem o dom. Os Ronaldos, Roberto, Robinho, Kaká, Fred e muitos outros. Tanto que venceram todas as partidas até agora, mesmo não demonstrando muita garra em campo, mesmo com a barreira quase intransponível de adversários sem dom, mas bem treinados e com uma vocação bastante disciplinada para o futebol. Venceram, mas, como disse mesmo Armando Nogueira, parece que a alma do futebol brasileiro ainda não entrou em campo. Está extraviada. Para o mercado em que o futebol se tornou, isso é incompreensível. Numa Copa Mundial, o que está em jogo é a posição top de linha do mercado e tudo o que isso significa. Exige o máximo de um espírito competitivo. É vencer e vencer. A qualquer custo, a qualquer preço. E isso, muitas vezes, exige mais do que garra, exige é a alma mesmo.

Tanto que o Brasil não perdeu nem uma até agora. Pelo menos, até agora. Mas o mercado quer mais. Hoje, o espírito que inspira o futebol mundial é o espírito de guerra. Não é vencer o adversário. É derrotar, estraçalhar, aniquilar o inimigo, fazê-lo sangrar até a última gota. E é esse espírito belicoso, de um bárbaro faminto, que anda solto nas arquibancadas, nas cabines da imprensa, no meio da torcida surda e cega, que quer tudo e mais um pouco. Até o Jabor, que às vezes tem bom senso, e Armando Nogueira, que é uma alma privilegiada, os dois querem até o último fio de cabelo. Querem a alma dos nossos jogadores. Mesmo que, para isso, seja preciso mandar uma para o sacrifício. E a escolhida é a de Ronaldo.

Sinceramente, não sei o que Ronaldo tem, o que o está aborrecendo, angustiando, mas sei que, seja o que for, a sua alma está ferida. Está machucada, abatida. A alma de Ronaldo precisa de ajuda, de um cuidado especial. Precisa de carinho mesmo, como disse o Filipão. De pai e mãe, como ele mesmo soube e foi buscar. Da amizade dos amigos, como tem contado. Pode ser ingenuidade de quem não entende nada de futebol nem de mercado; pode ser estupidez de quem não consegue incorporar, ou pelo menos tenta não conseguir incorporar, o espírito belicoso dos mercados altamente competitivos; pode ser simples ignorância; mas, sinceramente, hoje admiro mais os jogadores brasileiros. Admiro-os por sacrificarem o seu dom, em nome de uma virtude em extinção: a solidariedade. Jogaram seriamente, mas ocuparam sua alma com outras tarefas. Formaram uma rede de proteção para Ronaldo. Cada gota de suor derramada em campo é o sinal do esforço que fazem para distrair Ronaldo.

Taí. Também vou torcer pra Ronaldo. Espero que sua alminha de brasileiro se recupere logo. Vou desejar, do fundo da minha alma, que nos 90 minutos de hoje, ele dê muitos dribles bonitos, passes para muitos gols e toques de bola especiais para marcar o seu gol e fazer as pazes com a sua própria alma.

Agora tem uma coisa. Demonstrar solidariedade com o colega Ronaldo, tudo bem. Mas não me inventem de praticar essa virtude com o ex-Zico. Até fico com pena dele também, não sei do que os japoneses serão capaz de fazer se o técnico brasileiro não conseguir A Vitória, mas isso é problema dele. Foi uma escolha pessoal. Poderia estar junto com o solitário Parreira, o chorão Zagallo e outros amigos mais. Quis ousar, fazer uma coisa diferente, agora assume. Espírito esportivo!


Bom jogo para todos e cuidem bem de suas alminhas.

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