Vou contar uma história. Essa também não é minha, foi a Cris que me contou e foi alguém que contou pra ela. É a história da faca que meu pai me deu. Um dia meu pai me deu uma faca, a mais bonita de todas. Tinha lâmina de aço afiada, cabo de chifre de boi e bainha de couro natural. Uma faca sorocaba, ele disse, mas acho que é mineira. Não importa. Uma belezura. Não era grande de assustar, mas também não era pititica, mais igual a canivete. Era de bom tamanho, pra levar na cintura e cortar rama de folha que atravancasse meu caminho, modelar vareta de bambu pra fazer papagaio, entre outras finalidades mais saborosas, como descascar laranja e cortar carne queimada na fogueira.
Um dia, depois de muito tempo, essa faca ficou meio que cega, já não cortava tão bem como antes e volta e meia me deixava na mão. Então, pedi ao amigo de um amigo do meu pai, que arrumasse aquela lâmina e trocasse por outra mais nova, mais disposta a cortar os fios que embaralhavam o meu caminho ou a carne que sangrava na fogueira. E ele arrumou e ela durou mais um outro tanto de tempo. Um dia, que não aquele primeiro, ela estava num canto do fogão e passou um menino correndo e jogou a faca no chão. Não caiu de ponta, de jeito que estragasse a lâmina, mas caiu de cabo e quebrou um lado da empunhadura, quebrou de tal forma bem quebrado que não dava pra colar nem parafusar de novo a peça no lugar.
Voltei no amigo do amigo do meu pai e pedi a ele que me arrumasse outro cabo para aquela faca de bainha de couro natural. O homem fez um cabo caprichado, de osso de chifre de búfalo com detalhes em metal, fez uma peça bem moderna mesmo. Ficou outra belezura. E eu olhei para aquela faca e fiquei pensando, que faca especial eu tinha nas mãos. Não era uma faca qualquer. Era uma faca mágica. Não tinha mais nada da faca original, nem a lâmina nem o cabo, mas ainda era e sempre será a faca que meu pai me deu.
A Cris me contou essa história uma vez só, em pé, na beira da garrafa de café, e nunca mais esqueci. Acho que é porque ela me fala da vida. Me identifiquei demais com aquela faca que meu pai me deu. Nesse tempo todo já mudei muitas vezes. Cresci, acho que amadureci (disso não tenho tanta certeza, mas é um pouco inevitável), troquei de roupa, experimentei novos estilos, mudei de opinião várias vezes, mas continuo sendo eu mesma, com esse jeito desajeitado de levar a vida.
Essa história também me fala dos homens e do mundo. Na aparência mudamos muito. Ficamos ultra modernos, tecnológicos. Nos desumanizamos, desnaturalizamos para virarmos seres cibernéticos. Não vivemos mais no meio da vizinhança, vivemos em rede planetária, conectados ao mundo virtual. Não nos alimentamos mais dos frutos da terra, mas daqueles transformados em laboratórios, transgênicos. Enfim, pensamos e acreditamos que viramos seres transcendentais. Mas, no fundo, no fundo, continuamos os mesmos.
Permanecemos pavorosamente angustiados e desesperadamente felizes, buscando superar a incomunicação humana para nos tornarmos uno e, aí de fato, transcendentes, como propôs Theilhard de Chardin. Igual a faca que meu pai me deu, permanecemos, ainda que fingindo termos superado a nossa condição humana, permanecemos natureza, poeira do universo, os mesmos desde sempre. Que nem os ruminantes, que por séculos e séculos a fio continuam no pasto mastigando o capim, ainda ruminamos, no fundo da nossa alma, as velhas idéias de solidariedade e o sonho de nos tornarmos o todo de qualquer parte.
Continuamos sendo peças de puzzle. Uma única não quer dizer nada, não tem nenhum significado, como escreveu um dia Georges Perec (in A vida modo de usar). Uma única, não passa de pergunta impossível, desafio opaco, mas basta que se consiga conectar uma delas às suas vizinhas, ao cabo de alguns minutos e tudo se torna evidente. Das duas peças, miraculosamente reunidas, se forma uma única e assim por diante, até vislumbrarmos um conjunto pleno de significado. E é assim que eu penso o mundo. Sozinhos, é difícil percebermos o sentido da nossa existência. Juntos formamos um belo conjunto da natureza, com a mesma missão de sempre: encontrar o sentido da vida. Pena que o homem contemporâneo ande tão sozinho e tão distraído, preocupado apenas com suas guerras, particulares ou coletivas. Pena mesmo.
Vou aproveitar a chuva e montar um quebra cabeça de mil peças.
Um fim de semana em boas vizinhanças.
Até de repente.
Um comentário:
Não fui eu quem te contou essa história não, Patrícia. A que eu contei era muito mais sem graça.
Emocionada, aqui.
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