quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Nem tudo que cai no chão é lixo


Ilustração: Google!
Photoshop: eu mesma

Esse era o título de um ensaio fotográfico, publicado em um dos primeiros números do jornal De Fato, que circulou em Belo Horizonte em meados dos anos 70. Desde que passei os olhos naquela foto-reportagem, não consigo mais andar pela cidade sem pensar de novo e sempre nessa frase: nem tudo que cai no chão é lixo.

Agora, ainda nesta semana, estava ouvindo o noticiário e, mais uma vez, ela me veio à cabeça. Perdi a graça completamente. O povo está pirando de vez ou a vida é que está mesmo, de fato, esvaziada de qualquer significado? Olha que já vi muita coisa danada pelas calçadas de Belo Horizonte. Quando era pequena, ou melhor, menina, já que não posso dizer que cresci muito daquele tempo pra cá; mas quando era menina, me impressionava muito as calçadas das ruas Tamoios com São Paulo e avenida Amazonas.

Nesse entroncamento de ruas, ficavam expostas todas as nossas feridas. A pobreza, os velhos abandonados, crianças catarrentas, mulheres descabeladas e toda sorte do que hoje chamamos de excluídos. Era um alívio para os pecadores, que encontravam ali uma boa oportunidade para reduzir suas penas, distribuindo esmolas a torto e a direito. Era um prato cheio também para os sádicos, que passavam por lá para tripudiar das dores alheias.

E me impressionava, particularmente, um senhor já de idade, que tinha vaga cativa bem na virada da rua São Paulo com Amazonas, entrando para a Tamoios. Ele não se contentava de apenas ficar ali, com sua caneca de alumínio, pronta para receber um donativo. Expunha aos nossos olhos distraídos uma enorme ferida na perna, que estava sempre aberta. Um dia, alguém me disse que aquele pobre era uma farsa. A ferida dele era um bife de contra-filet que, com habilidade artística, ele colava em sua perna. Como as mulheres, que se enfeitavam para ir ao Centro, ele se maquiava todos os dias, antes de descer para a luta.

Fiquei mais impressionada ainda. Um bife de contra-filet! Me lembro que ainda voltei àquela esquina algumas vezes para tentar confirmar essa versão. Mas toda vez, quando chegava perto do tal sujeito, não tinha coragem de olhar para a perna pestilenta. Na verdade, ele tinha uma estratégia bem eficaz para desviar nossa atenção. Assim que alguém se aproximava dele, e isso eu vi, ele começava a gemer, a falar, a contar sua triste história e a balançar a canequinha de alumínio, fazendo as pratinhas tilitarem na lata. Aí nossos olhos logo se desviavam da perna para os olhos dele. Nessa hora, meu espírito cristão sempre falava mais alto e ele levava mais algumas das minhas moedas para o seu cofrinho. Nunca consegui saber se ele era um pobre coitado ou um coitado danado de esperto.

Já cansei de ver também muito bebum amanhecer nas calçadas da cidade. Encharcavam a cara à noite inteira e, de repente, pumba!, ali caiam, ali ficavam. Já gastei tempo pensando neles também. Por que bebem tanto? Será que é por amor? Ou desamor? Será que é desespero? Destempero? Loucura? Teve uma madrugada, que um desses bateu o interfone lá em casa. Cheguei! Abre aí pai! É o Zé Mário. Qui Zé Mário, siô? E não tinha quem convencesse o rapaz que ali não era a casa dele. Foi assim até o amanhecer, quando ele, cansado, evidentemente, mas convicto de que estava em casa, deitou e dormiu ali mesmo, em frente ao portão da garagem. Tem isso.

Mas agora, parece que as coisas estão fora de controle. Outro dia, ouvi na CBN que os pobres de São Paulo cansaram de esperar ajuda. Também ninguém mais abre a carteira na rua, para tirar dinheiro, com medo de ser assaltado. Então, eles estão se virando como podem, fazendo das calçadas terreno baldio, onde constróem suas casas e criam suas famílias. Mas estes ainda sonham com a vida. Ainda não viraram lixo.

Então. O que me fez pensar naquela frase outras vez, foram as crianças abandonadas dentro de sacos de lixo, como se lixo fossem. Não usaram esse recurso como uma estratégia de sobrevivência. Não foram parar ali por amor, desamor ou qualquer outro tipo de desilusão. Não escolheram a rua para exibir suas tragédias. Foram postas. Dispensadas, despejadas, deletadas. Parece que a vida tornou-se um bem descartável. Está adquirindo um valor virtual, que você pode apagar sem qualquer remorso, pois não vale mesmo nada num universo paralelo. Virou um produto qualquer e, pior, está sobrando na prateleira. Será que não tá na hora de nos desconectarmos e cairmos na real? Queria pensar nessas crianças, mas, sinceramente, não dou conta.

Inté!

3 comentários:

MaicknucleaR disse...

Waaaaaaaaw...
seu teclado continua atirando na mira heim?
bjituzxxxx

Anônimo disse...

Eu lembro!, eu lembro dessa ferida. Então era um bife? Fiquei sabendo que à noite ele esgaravatava a ferida com gilette, para ela ficar sempre fresquinha. Credo.

patricia duarte disse...

Ei vocês!
Oi Maick, não ando tão afiada assim. Do meu teclado só tem saído bala perdida. Deu branco mesmo. Mas, vou levando, uma hora passa.

Ei Cris,
Não conhecia essa versão. Credo!, hem? Quer dizer que ele ficava ali, cutucando a ferida a noite inteira, argh!
Eu não ia contar, porque é muito nojento mesmo. Mas já que você começou, alguém me disse outra vez que não era memso bife (eu não sei não!), mas que ele esfolava a perna, não sei se com gilete, como você está dizendo, e jogava água oxigenada por cima pra ficar brilhando. Eca! Nunca vamos saber mesmo, né? bjim.