Então, a Bel é muito atenta a tudo que diz respeito à língua portuguesa e ela observou que as meninas do telemarketing estão abandonando o péssimo hábito do gerundismo. Aliás, para Bel não era um hábito, mas uma escolha política. O gerundismo é o tempo que melhor expressa a cultura contemporânea da falta de compromisso com tudo na vida. O preguiçoso vou estar encaminhando não assume nenhum compromisso de tempo. Pode ser agora, hoje, amanhã, depois de amanhã ou um dia qualquer, o que, aliás, é o que mais acontece. Um dia, quem sabe. Mas o gerundismo está caindo
Isso pode ser uma boa notícia, afinal, usamos esse tempo quando tentamos evitar uma ordem imperativa e, mais do que isso, demonstrar alguma polidez: Você poderia me passar aquele livro? É chique, não é? Em vez de dar uma ordem: passe-me aquele livro!, oferecemos uma opção ao nosso interlocutor: você poderia. E ele escolhe se quer ou não passar, mas, normalmente, é assim que conseguimos convencê-lo a ser educado e a passar o livro de boa vontade e até feliz por ter sido tão bem tratado. Mas, o futuro do pretérito esconde armadilhas. Ele pode ser usado também quando nos referimos a um fato futuro em relação a outro fato passado, ou a um fato futuro, mas duvidoso, incerto: eu passaria, se você não fosse tão imprudente! Seria mesmo muito educado se eu passasse esse livro! Ou seja, o mais provável é que não vai passar, não vai fazer nada. Passaria, mas não passa. E aí voltamos à mesma vontade política que, anteriormente, determinou a escolha do gerúndio como o tempo exemplar do descomprometimento com tudo. Viram o perigo?
Mas a história é a seguinte: a Bel precisou ligar para uma dessas empresas de telefonia. Isso já é um problema, vocês sabem disso, não sabem? Mas ela é corajosa e ligou. Assim que a menina atendeu do outro lado da linha, a Bel começou a falar e a expor o seu problema, mas foi subitamente interrompida:
- Um momento, por favor.
Silêncio. A Bel ficou aguardando, ansiosa. E aí veio a bomba:
- Qual seria o seu nome?
- !??!?
Bel entrou em estado de choque. Como assim? Qual seria o meu nome. O que ela está querendo dizer? Será que ela está querendo mesmo ouvir essa história? Não é possível! Vou conferir:
- Ahn? Desculpa, não ouvi direito.
- Qual seria o seu nome, minha senhora? Por favor.
Então, era isso mesmo que ouvira. Ela queria, de fato, saber qual seria o nome da Bel. Nesses casos, quando a pessoa tem certeza do que quer, sou da opinião de que não devemos nos negar. Se ela queria saber, acho que Bel deveria contar. Então foi mais ou menos assim:
- Olha que gracinha! Não é a coisinha mais bunitinha da terra? Vai se chamar Leoma!
Meu pai olhou com cara de interrogação para a minha mãe:
- Ahn?
- Leoma, homem de deus! Leo de Leonardo, seu nome e ma de Marília, meu nome: Leoma!
- Ah! – disse meu pai com cara de entendido, mas com um ar desconfiado também: será que o parto mexeu com a cabeça dessa mulher? Leoma! Onde já se viu isso? Que coisa horrorosa para a coitada da criança.
- E aí? O que você achou? – quis saber a minha mãe.
- Acho esquisito! – disse meu pai sem papas na língua. Queria um nome mais clássico. Dulcinéia! Olha que beleza! Um nome doce!
- Cruzes! Tem dó. E o que significa Dulcinéia? Nada, não diz nada para nós. Leoma é a forma composta do nosso amor.
- Ahn? Coitado do nosso amor, mulher! E coitada dessa criança. Pensa essa coisinha bonitinha indo para a escola. Aí perguntam o seu nome e ela diz: Leoma! Parece Leona, mulher brava, rude, grosseira! De jeito nenhum!
- Aí amiga, posso te chamar assim, não posso? – quis saber a Bel.
- É que...
- Não, não fique constrangida. Afinal, recordar também é viver. Não me custa nada revelar essa parte da minha história para você. Afinal, é só um detalhe em relação a tudo que tenho para te dizer ainda.
- Mas...
- Calma. Vamos lá: nisso, enquanto meu pai e minha mãe discutiam sobre o melhor nome que poderiam me dar, entra no quarto minha vó. Pegou a conversa andando, mas entrou de cara:
- Leoma! Tem dó Marília, perdeu o juízo na sala de parto! De jeito nenhum, vamos devagar. Essa menina deve ter outro futuro. Olha que gracinha! E não é que ela é a cara de minha mãe. Taí, acho que vocês deveriam prestar uma homenagem a bisa: que tal Leocádia!
- Aí quem perdeu o juízo foi meu pai. Quase pôs minha avó quarto afora. Só sei que fiquei quase uma semana sem nome. As pessoas me chamavam de Bunitinha. E a bunitinha? Tá mamando direitinho? Meu pai emburrou prum lado, minha mãe pro outro e eu fiquei no meio dos dois, sem nome, nem documento. Foi aí que a Bá, a mulher que ajudou minha vó a criar minha mãe e, depois, ajudou minha mãe a me criar, entrou na história. E ela, com toda a sua autoridade de ama de leite, falou com minha mãe:
- Não tem nada disso não, Marilinha. Não tem nada de Leoma, Dulcinéia, Leocádia ou qualquer outra Marocas da vida. Essa menina já nasceu com o nome dela. Olha se não é? Olha se o sorrisinho dela não é um sorrisinho de Isabel? É claro que é. Pronto. Essa menina se chama Isabel. Sempre.
- Meu pai estava no quarto e ouviu silenciosamente a sugestão de Bá. Minha mãe, já cansada de ficar emburrada tanto tempo, ouviu calada também. Depois, os dois se olharam, olharam para a Bá, olharam para mim. Riram e concordaram.
- Não é que ela tem mesmo um jeitinho de Isabel? É isso mesmo. Pode registrar! Isabel – disse minha mãe.
Uma semana na real para todos. Sem futuro do pretérito nem gerúndio nem sonhos nem ficções. Só o que vier e que venha tudo
Buenas.
Um comentário:
Hahahahahaha ótimo! A Isabel deu uma baita aula. Genial diria. Agora estou até com receio de que ela leia o meu blog e me deixe tão confuso quando a garota do telemarketing. :D
Beijos!!!
P.S.: Incrível como os filhos ensinam não?
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