Tenho um problema: preciso marcar as minhas férias de julho. Todo ano reservo uns dias para esse período, que coincide exatamente com o recesso escolar dos meninos. Outros quinze dias tiro em janeiro e guardo mais cinco dias para a semana da criança, em outubro. Tudo friamente calculado para termos, ao longo do ano, pelo menos 25 dias inteiros para ficarmos juntos. Mas este ano estou com um problema: não consigo marcar minhas férias. Tânia já está ficando impaciente e desconfiada de que estou querendo boicotar o seu trabalho. Mas não é nada pessoal. Estou mesmo com dificuldade.
A primeira vez que ela me procurou, há quase dois meses, com o quadro de marcações na mão, senti um frio na espinha. Na hora não associei esse sintoma ao conteúdo da nossa conversa. Só registrei. Mas devo ter expressado um sentimento qualquer de desconforto, porque ela me olhou com espanto e repetiu: férias, Patrícia! Férias! Mas desconversei e disse que iria consultar o calendário escolar dos meninos e voltaria a falar com ela. Ninguém estava com pressa. Ela saiu meio murchinha, mas não disse nada. Passaram-se uns dias e ela voltou. O quadro em excel, com barras coloridas, já estava quase todo preenchido. Só algumas linhas ainda estavam em branco, entre elas, a minha.
Tânia é sempre bem humorada e divertida. No dia a dia, ela tem de lidar só com problemas: é a marcação de ponto errada de um funcionário; um desconto indevido no contracheque de outro; ou alguém que ligou pedindo um serviço que está atrasado e mais alguns abacaxis que desconheço. E ela faz tudo isso com uma leveza invejável. O mundo está desabando sob seus pés e ela saltita entre os pedaços de chão que restam e atravessa seu caminho sem ameaçar ninguém. Por isso, quando chega a folha de marcação de férias, ela sente que é o seu momento de glória. Se aproxima de nós, como uma fada que vem com sua varinha de condão realizar todos os nossos sonhos.
Mas percebi, quando ela se aproximou de mim pela segunda vez, que estava um pouco tensa. Nem rendeu assunto, quis saber só se já tinha me decidido. Resolvi também não estender a conversa, porque já estava pressentindo que teria dificuldades. Disse um vou olhar isso, meio entre os dentes, e voltei para o computador. Neste dia não senti o frio na espinha, foi diferente. Senti um peso nos ombros, como se estivesse prestes a decidir o destino do mundo. Que besteira! - pensei. São míseros cinco dias fora da rotina, para fazermos o que bem entendermos. Poderíamos até pensar numa viagem, por que não?
Mas quando essa idéia me passou pela cabeça, arrepiei. Ops! Tenho um problema! Foi aí que percebi que estava em apuros. Marcar as férias significava exatamente isso: marcar uma viagem. Não a viagem dos nossos sonhos, claro, porque o mar não está pra peixes, ou melhor, o céu não anda pra andorinhas, mas só uma viagenzinha qualquer. Uma saída pelas redondezas ou uma esticada até o litoral. Mas que seja, ainda assim, significará sair de um lugar onde estou para outro onde vou estar. E é aí que mora o problema. O meu problema. Fiz até um diagnóstico, de leigo, mas um diagnóstico: síndrome do imprevisto. Só de pensar em férias, viagem, sair de onkotô e ir pronkovô, os sintomas aparecem: náusea, enxaqueca, arrepios, dores difusas e outros males.
Não sou assim, estou. Antes, o imprevisto era um imprevisto mesmo. E o encarávamos como uma oportunidade para enriquecermos nossa biografia. Conhecer cidades que não havíamos planejado; pessoas, as mais improváveis possíveis; experimentar quitutes dos quais nunca havíamos ouvido falar; e assim por diante, enquanto o problema, o imprevisto era superado. Mas hoje, o imprevisto é o mais certo de acontecer. Já saímos de casa na expectativa: o que vai ser dessa vez? Ficamos tensos, mau humorados, olhando pros lados com cara de pouca conversa. Horrível! Não quero isso. Não quero marcar minhas férias. Já escolheram por mim: prefiro a minha entediante rotina.
Não quero me aventurar nas estradas esburacadas, me arriscar nos desvios de chão de terra, levando fechada de caminhoneiros mal educados e prepotentes. Não vou mesmo encarar 400 quilômetros de asfalto, nem cem, correndo o risco de topar de frente com um engraçadinho qualquer que se acha o dono da estrada e anda na mão que bem lhe convier. Nem quero perder tempo dentro de um ônibus apertado, mal ventilado, com pacotes despencando sobre nossas cabeças a cada curva mais fechada. Isso, pra não dizer dos chatos que falam alto o tempo todo, contando detalhes da sua vida que não interessam a ninguém, além de outras inconveniências.
Estou aborrecida mesmo. E tem mais: de avião, nunca! Vou eu parar num aeroporto qualquer, com mala, sacola, menino, pra ficar fincada numa cadeira desconfortável por 8, 10, 12 horas e ainda ter de brigar na fila para arrumar lugar no avião? Já fui, não vou mais. Agora é ruim, hem? Não é imprevisto, como disse, é certo de acontecer. E pior, com a televisão filmando tudo e depois mostrando pro Brasil inteiro: aquele bando de desarvorados e melancólicos passageiros, com a cara amarrotada; desfalecidos em cima de malas e pacotes; agachados num canto do corredor; mal acomodados em cima de carrinhos de bagagem, com as mãos segurando o queixo e os olhos perdidos num ponto infinito; se arrastando nas filas do check-in e ainda tendo de achar bom, porque estão todos vivos. Não vou me expor nem expor meus meninos a essa tragédia de luxo.
Percebo que estou limitada na minha liberdade de sair por aí. Não sei se por capricho meu ou se pelo persistente desrespeito de seguidos governos ao nosso direito de ir e vir. Já estou ficando até confusa. Será que temos mesmo esse direito, com tanta criancinha passando fome, tantas famílias sem terra, tantos homens sem emprego, tanta miséria por esse mundo afora todo? Será? Será que não estou sendo muito egoísta demais, querendo tirar férias, viajar e ainda mais viajar confortável e seguramente? Ai ai, viu? Então, está bem. Depois conto pros meninos. Segunda-feira vou falar com a Tânia que não vou mais tirar férias. Vou ficar só trabalhando. Se precisar até fazendo hora-extra. Será que isso vai resolver os problemas do Brasil?
Um finzinho de semana com ares de férias. Sem compromisso, sem hora marcada, sem rumo e sem direção.
Buenas e tantas.
Um comentário:
Oi Patricia, não se cobre tanto! Pensar nas pessoas que não podem tirar férias ou nas crianças com fome, não é egoísmo. Egoísmo é você não desfrutar da presença constante de sua família neste curto período. Enfrente as estradas, acredito que estão melhores que os aeroportos, e vá! Na volta publique o que viu. Ficar em casa, ainda que com todos eles ao seu lado, não lhe permitirá deixar suas impressões.
Beijos! E boas férias!!!!
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