segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Cidades muito

Trilha alternativa: Vá lá, Caetano e Gil juntos, cantando Haiti. Não resisti. A canja no pé do post, conforme o combinado.

Sei que a franqueza nem sempre é uma virtude, mas ainda assim é preferível à indiferença. Já estou rodeando este assunto tem dias e me recusando a pensar nele. Ainda mais agora, em pleno vigor do estado de alegria. Mas ontem li o artigo de Renato Janine Ribeiro no Mais! e fiquei comovida. Ele, como todos nós, está perplexo, desorientado e perdido diante da crueza dos fatos.

Vou dizer também: pra mim, está ficando insuportável levantar todos os dias lamentando a morte de pessoas saudáveis, vítimas da violência de todo tipo e de qualquer natureza. Viramos todos carpideiras e se não prestarmos atenção, só vamos fazer isso na vida: chorar a morte de inocentes daqui e de todo o resto do mundo. Está ficando cada dia mais intolerável essa ladainha. Eu, pelo menos, estou que não me agüento.

Me irrito com todas as teorias que nos oferecem para explicar o caos em que nos metemos. E me dá nos nervos também aqueles que desqualificam essas mesmas teorias. Quem pode conviver com isso? Ontem, depois de ler o artigo de Janine, cedi ao tsunami dos meus pensamentos e deixei que viessem todos de uma só vez, em ondas gigantescas e dispersas, jogando água em todas as direções.

Quem sabe assim, do meio desse turbilhão, consiga pescar uma idéia que acalme as minhas manhãs? Quem sabe encontre também uma explicação que me tire da indiferença, que nunca tive? A morte de João me toca com a mesma intensidade, tanto quanto as mortes de outros joãos e marias pelo mundo afora. Tanto quanto a morte de zé manés que engrossam as estatísticas do ibge. Desse mal não morro, mas ele pode matar, sei bem disso.

Concordo e discordo de que é a injustiça social quem está matando nossos jovens sadios. Concordo e discordo de que é a educação sem valores quem está nos pondo em risco e ameaçando a sobrevivência de gerações futuras. Concordo e discordo de que nossas penas são muito generosas para os crimes hediondos. Concordo e discordo de que a impunidade estimula a irresponsabilidade sobre os atos que cometemos. Concordo e discordo de que é o tráfico de drogas quem está envenenando a nossa sociedade. Concordo e discordo disso e de todas as demais explicações que já cansei de ouvir nesses últimos dez dias.

Como diz o Cláudio, só falta agora ouvir um professor de educação física dizer que a culpa é da falta de políticas de esporte para os nossos jovens. O cabelereiro retrucar que esses jovens estão perdidos porque não cortam mais o cabelo como deveriam. A doceira da esquina reclamar que a violência é estimulada pelos rigorosos regimes a que esses meninos estão submetidos, com toda sorte de restrição aos doces. E assim por diante. E com todas elas, vou concordar e discordar.

Mas bateu uma onda que me laçou pelo pé e me levou em outra direção. Lembrei de uma frase: os maus exemplos não deveriam ser mostrados. Não foi Dona Censura quem disse isso. Nem foi ontem que disseram isso. Foi Platão, há algumas centenas de anos atrás. Não li Platão, mas um amigo que leu me disse que foi. Platão defendia essa idéia alegando que se víssemos com muita freqüência maus exemplos, ficaríamos tentados a repeti-los. E eu fiquei tentada a concordar com Platão.

Desconfio que perdemos mesmo a nossa capacidade de estranhar a violência. Ela foi banalizada de tal forma pela mídia, através dos filmes, noticiários, telenovelas e outros produtos menos nobres, que nem temos mais indigestão quando estamos frente a frente com ela. Foi banalizada também nas pequenas violências que cometemos cotidianamente contra o vizinho, o motorista do lado, o pedestre, o menino de rua e assim por diante. Mas é nesse caldo, da violência para consumo diário, que surge a barbárie. Essa sim, ainda capaz de nos surpreender de quando em vez e de nos devolver o sentimento de indignação.

Mas fiquei tão tentada a concordar com Platão que quis ver essa frase escrita no papel. Essa e outras que pudessem me conduzir por novos caminhos. Fui atrás dela na obra República, de Platão mesmo, onde me disseram que ela estaria. Não a encontrei. Mas achei outra que me provocou um maremoto de pensamentos. Aliás, o livro todo, que li na diagonal nesta última madrugada e agora deixei-o sobre a minha cabeceira, para retomá-lo num ritmo mais saboroso. De uma certa forma, República me devolveu a capacidade de sonhar. Aqui, no caso, de desejar um mundo ideal. Utopia da pura, claro, mas como poderemos sobreviver sem ela. É a utopia que nos faz caminhar, a abandonar a nossa apatia, a nossa descrença, para sair atrás dos nossos sonhos e ideais. Sem essas referências, ficamos como se estívessemos atolados num terreno movediço. Afundando, só afundando.

Na República, Platão descreve o diálogo de Socrátes com alguns homens sobre a natureza da justiça e da injustiça. Tema bastante apropriado para o momento. Para isso, Sócrates propõe a seus ouvintes abandonar a análise individual dessas questões, transferindo-a para um cenário onde elas se manifestam de forma mais ampla e, portanto, de mais fácil apreensão. Sócrates sugere, então, a construção de uma cidade imaginária, desde a sua constituição inicial até atingir a forma mais complexa de uma rede intrincada de grupos e de relacionamentos, semelhantes às que vivemos hoje, guardadas as devidas proporções.

Numa certa altura desse diálogo, os homens chegam a uma questão: qual deve ser o tamanho ideal de uma cidade, para que ela possa ser ainda considerada uma cidade justa? Para Sócrates, uma cidade pode crescer até onde puder se manter unida, para além disso, não! E esse é um problema que nos afeta nas vísceras. Todas as grandes cidades brasileiras abrigam hoje várias cidades dentro dos limites do seu território. Cidades concorrentes, que transformam o espaço público em campos de batalhas sangrentas. Cidades que abrigam pelo menos outras duas dentro delas: a dos pobres e a dos ricos. Mais que duas: a dos empregados e dos desempregados; a dos consumidores e dos excluídos; a dos que cabem dentro do espaço urbano e a dos que se aglomeram no entorno desurbanizado e assim por diante. Cidades que acolhem todos os diferentes e, por isso, apregoa a sua qualidade de diversa. Acolhe, mas os mantém próximos a seus iguais, reforçando os contrastes e alimentando excessos de toda ordem. Cidades muito tudo. E, principalmente, muito violentas e injustas.

Fico pensando, se teremos como escapar da violência, sem voltarmos a discutir esse tema já quase esquecido, da década de 70, se não me engano, mas fundamental para encontrarmos uma saída adequada dessa desordem onde estamos chafurdando: a questão da cidade e do impacto dos processos de urbanização no Brasil, da década de 60 em diante até os nossos dias. Vou por aí. Pelo menos por enquanto.

Para os que gostam, a companhia de milhões de foliões na avenida. Para os que não curtem, vai a canja de Gil e Caetano, logo abaixo:

Até o próximo baile!

2 comentários:

Anônimo disse...

Parabens! Excelente texto!

Parlamento Jovem disse...

Obrigada pela visita e comentário. Continuo pensando sobre essa questão da violência, mas, como a maioria de nós brasileiros, não tenho conseguido avançar em nenhuma direção. Continuo é mais pasma como tudo que acontece.