domingo, novembro 26, 2006

Mayday, mayday

Trilha alternativa: Dreamland, com Madeleine Peyroux

Não tenho mais medo de avião hoje do que tinha ontem. Mas nem sempre foi assim. O ronco de um avião cruzando o céu era uma senha. Onde estivéssemos, fazendo o que estivéssemos fazendo, tudo era interrompido, para ver o avião passar. Era um fascínio. Eu me lembro que quem primeiro apontasse o dedo, indicando de onde ele iria surgir, podia se gabar da sua esperteza por bons dias, pois não era toda hora que tínhamos a chance de ver, sobrevoando a cidade, um cessninha que fosse e, menos ainda, um boeing 707 ou um caravelle.

Enquanto os aviões não vinham, nos distraímos, às vezes, olhando o vôo dos urubus. O vôo de um urubu é muito parecido com o de um avião. Pelo menos de longe. Com as asas bem abertas, planando numa corrente de ar, fazendo curvas, descendo e subindo, parecem aviões acrobatas. E os urubus rondavam a cidade com muito mais freqüência do que os aviões. Hoje é o contrário. Mas, naquele tempo, e nem tanto tempo faz, eram eles que nos distraiam quando uma brincadeira perdia a graça. Só de vez em quando, muito raramente, os aviões tornavam-se a nossa brincadeira.

Então. Passado o fascínio pelos aviões, veio a indiferença. Ainda olhávamos para cima, mas só para conferir se aquele trambolho não ia cair em cima de nossas cabeças. Não saíamos mais para rua e nem caçávamos no céu aquele estranho pássaro. Alguns ainda preservaram a fissura por aviões, mas só por aqueles de guerra. E declamavam os feitos de cada um deles, na 1ª. e na 2ª. Grande Guerra, como se fosse uma poesia. Mas não eram diferentes daqueles que discutiam o valor de um selo ou dos que trocavam figurinhas de carros ou recitavam a escalação de times que nunca viram jogando. Era só mania ou um jeito esquisito de passar o tempo.

Foi quando nós mesmos tivemos de entrar dentro de um avião, para cortar o céu e sobrevoar a terra de uma cidade a outra, é que o medo começou a nos provocar. Alguns foram definitivamente derrotados e nunca venceram a paura de voar. Até hoje só trafegam em terra firme. Outros, mesmo amedrontados, enfrentaram o desafio e fizeram o seu batismo no ar. Uns poucos realizaram o sonho de criança e fizeram a sua primeira viagem com o nariz grudado no vidro da janelinha para não perder nada. Foi só quando tivemos de entrar dentro de um avião é que começamos a nos questionar como é que aquela geringonça toda, muito mais pesada do que o ar, muito menos flexível do que a asa de um passarinho, poderia se manter nas alturas sem cair sobre nossas cabeças.

Mas com o advento dos relógios digitais, que controlam com absoluta precisão até os segundos dos nossos dias, as viagens de avião começaram a se tornar mais freqüentes. Valia tudo para ganhar mais tempo. Assim como hoje. Não é que perdemos o nosso medo de voar, portanto, mas ficamos aterrorizados só de pensar em perder tempo. E, na hora de avaliar os custos e benefícios, as viagens de avião tornaram-se imbatíveis e, por isso, se banalizaram. Não o nosso medo, que ficou contido, mas nunca foi superado.

E não adianta os fissurados virem me dizer que andar de bicicleta é muito mais perigoso do que de avião. Ou que corremos muito mais risco ficando dentro de casa do que viajando num learjet desses que voam por aí. Segundo esses fanáticos, estatísticas do Departamento de Transportes do governo dos Estados Unidos já comprovaram que os acidentes aeronáuticos foram responsáveis apenas por 0,08% das fatalidades, enquanto acidentes ciclísticos contribuíram com 0,67%, acidentes domésticos com 17,99% e acidentes rodoviários, com 38,70%.

Americano acha que só tem bobo no resto do mundo. Ora bolas, quantas pessoas andam por aí voando num avião e quantas ficam por aqui em terra firme? Qual impacto é mais intenso: o de uma batida entre duas bicicletas, a 40 km por hora, se muito, ou entre dois carros, a 120 km por hora? E quantas pessoas ficam só em casa, porque nem tem para onde ir? Tenham paciência, né?

Também não me esqueci das tempestades solares e das bolhas ionosféricas. Sei muito bem que estamos entrando num período de atividades solares intensas. E mais, que o Brasil, pra mal dos nossos pecados, encontra-se exatamente numa das raras regiões do planeta onde ocorre o fenômeno das bolhas ionosféricas. Também sei que as tempestades solares interferem fortemente nos sistemas de comunicação, como aqueles utilizados pelos aviões. Sei ainda que os efeitos das bolhas ionosféricas sobre as telecomunicações e, principalmente em sistemas de posicionamentos, como os de um GPS, ocorrem em diversos graus de intensidade, dependendo de quanto o sistema está ou não preparado para resolver o problema da interferência. Se vocês se esqueceram disso, eu ainda me lembro.

O nosso medo, portanto, é muito justificado. E não vai ficar maior só porque a Aeronáutica resolveu agora, só agora, divulgar que, entre 1988 e julho deste ano, foram registrados no Brasil 796 casos confirmados de quase-colisões entre aviões. Isso não nos assusta mais do que os próprios aviões. O nosso medo é antigo e o mesmo de sempre: medonho. Mas, para superar o tempo, vamos continuar voando, como provam todos aqueles que estão pernoitando nos aeroportos, a espera da chegada de uma aeronave e do anúncio do próximo vôo. A todos, boa viagem e boa sorte.

Agora, como já é tarde, vamos nos recolher nas asas de morfeu e, se for possível, ter apenas bons sonhos.

Durmam com os anjinhos.

Voei.

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