Eis a questão: se uma formiga se perde do restante do seu grupo, o que acontece com ela? Parece uma pergunta banal, né? E é. Só que ela pode esconder uma discussão interminável. Se pode, não tenha dúvida, eu testo. É só distrair um pouco. É sempre assim que acontece. Mas, antes, voltemos à pergunta, aquela que determinou o placar final de mais uma rodada do Enciclopédia, a nossa doce obsessão das férias de julho. A maioria dos jogadores respondeu: ela morre. Assim mesmo, laconicamente, ou com um texto mais rebuscado, mas pra dizer a mesma coisa: ela morre. E, de fato, isso é o mais provável de acontecer mesmo, mas essa não foi a resposta certa. A correta diz o seguinte: ela fica muito confusa e, se não encontrar nenhuma companheira, geralmente, ela morre. Percebeu a diferença?
Primeiro, ela fica muuuito confusa. Esse detalhe é importante, porque diz muito do comportamento das formigas. Depois, ela tem a chance de trombar com o acaso ou com a sorte: cruzar com uma companheira no meio do caminho. Aí já viu, as duas movem as anteninhas, trocam feronomas, tricotam e encontram o rumo de casa. Agora, se isso não acontece, aí o bicho pega. E pega mesmo e ela corre sério risco de morrer. As formigas são assim: altamente vulneráveis. Persistem no planeta, porque se reproduzem aos milhões e são absolutamente disciplinadas. Mas sofrem de uma limitação básica. Pertencem a uma sociedade de especialistas, organizada por divisão de tarefas. Nela, cada grupo de indivíduos assume uma única e exclusiva tarefa, para a vida inteira.
Além das reprodutoras - as rainhas e os machos - existem as obreiras, que trabalham incansavelmente a vida inteira, fazendo sempre a mesma coisa, e as predadoras, soldados obedientes, responsáveis a vida inteira pela defesa da colônia ou ataque aos inimigos. É isso o que cada casta sabe fazer. Daí a confusão mental que elas enfrentam, quando se perdem ou se encontram diante de uma situação nova ou inesperada. Piram completamente. Se não aparece ninguém para ajudá-las a reencontrar o caminho, elas ficam perdidonas e entregues de bandeja a qualquer predador. Esse é o perfil da sociedade das formigas.
Aí fui andar na areia. Olhar as ondas, que desafiam todos os padrões que lhe são impostos. Arrebentam na praia cada hora de um jeito, num ritmo cada hora diferente do outro, com uma intensidade, mais forte ou mais fraca, totalmente ao acaso. E vi claramente a polêmica que vinha em anexo àquela pergunta. É a seguinte: será que nós também não estamos como essa formiguinha, perdidos de tudo? Será que não estamos também muito, muito confusos, diante desse mundo improvisado que estamos vivendo? Será que não estamos também correndo sério risco de morrer, por não sabermos buscar soluções novas para os imprevistos que atravessam nosso caminho a todo instante?
Coincidentemente, essa tarde, fui provocada mais uma vez a retomar essa questão. Claro, em outro contexto e de uma forma bem diferente, mas arrisquei a trilhar o mesmo caminho. No fundo, no fundo, o que Gilberto Dupas discute hoje no seu artigo, publicado no destemido jornal Folha de São Paulo, é exatamente isso. Se nós nos perdermos, o que poderá nos acontecer? E o que entendi do que ele disse é isso mesmo: ficaremos muito confusos e, se não encontrarmos ninguém para nos ajudar, correremos sério risco de morrer.
Só para situar. Citando algumas evidências dos profundos desarranjos que caracterizam a nossa sociedade, Dupas nos adverte que urge um novo olhar, onde o atual já não dá conta, para encararmos a imensidão de desafios que temos pela frente. Não vou copiar o que ele escreveu, porque o original é muito bom e vai ser muito melhor saboreá-lo na fonte. Mas a idéia é essa: até então, estávamos acostumados a um mundo de referências seguras, um mundo sólido, assentado na rotina de todos os dias. Éramos iguais a formiguinha. Tínhamos tarefas bem definidas e rotinas bem planejadas. Mas esse mundo caducou. Como disse Arthur Clarke, o futuro não é mais o que costumava ser. E hoje, quanto mais sólidos tentamos parecer, mais vulneráveis estamos diante do dinamismo, da ambigüidade, do imprevisto e da variedade a que estamos submetidos.
Como a formiguinha, estamos perdidos e confusos. Mas, para Dupas, a desorientação não é algo que possa ser combatido, e sim uma oportunidade desestabilizante para a busca de soluções. Entenderemos melhor uns aos outros se nos aceitarmos como perdidos e desorientados, vivendo num sistema onde o imprevisto é a regra e assumindo o perigo da ruptura, da morte e da decomposição. Dupas pegou pesado mesmo. Mas vou concordar com ele, quando conclui que o importante é investigarmos a razão mais profunda das coisas que nos deixam perplexos e buscar caminhos, em vez de inventar entidades que aliviem nosso terror momentâneo, mas que criem outros.
Então, pensei de novo na formiguinha. E, olha só, acho que não é hora mais de ficarmos nos espelhando nas sociedades dessas hymenopteras, assim como fizeram os gestores das sociedades industriais. Agora, para enfrentarmos esse mundo doidão que demos de criar, temos de buscar inspiração em novas espécies. Talvez, nos golfinhos. Golfinhos sobrevivem num ambiente difícil, rodeados por tubarões, mas se preservam, porque estão sempre vigilantes, interpretando as correntes, buscando informações, monitorando o ambiente.
Diante do improvável, do imprevisto, os golfinhos sabem se unir e agir em grupo e, se estão sozinhos, agem da mesma forma, buscando, implacavelmente, algo diferente, algo que realmente funcione, que faça sentido, para garantir a sua sobrevivência. Se necessário, podem até matar um tubarão, mas não é um objetivo. É assim que são, poderosos, porque não se rendem à rotina, buscam na criatividade, no improviso, a superação de suas dificuldades. São uns artistas. Êita, gostei deles.
Um oceano de águas claras e povoado de golfinhos para todos.
Inté.
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