sábado, julho 15, 2006

Palavras ao vento

Olha só, agora vou contar uma história. Não é minha. É uma história bem antiga que o Leo me contou e disse que tem tudo a ver. Tendo a concordar, por isso vou contá-la também e quem quiser que acredite. É a história de Cassandra. Era uma vez, a muitos e muitos anos atrás, no distante reino da Grécia, uma menina chamada Cassandra, filha do rei Príamo e da rainha Hécuba de Tróia. Esse é o começo da história. A partir daí, existem várias versões sobre como Cassandra cumpriu seu destino. Mas o como não importa muito, o fato é que, de um jeito ou de outro, essa menina desenvolveu um dom excepcional: a capacidade de ouvir as vozes dos deuses.

Não foi por conta desse dom, claro, mas pela beleza também excepcional de Cassandra, que um dos deuses, Apolo, acabou se apaixonando pela menina. Essa poderia ter sido uma bela história de amor, pois Apolo, entre outras virtudes, tinha um dos dons mais cobiçados hoje no mercado: o dom da beleza. Só que nas histórias nada acontece distraidamente. Para conquistar Cassandra, Apolo precisou dar uma demonstração irrefutável de seu amor. E ele foi fundo nessa prova. Ensinou a Cassandra os segredos da profecia. O truque de como transformar informação em conhecimento, né?

Cassandra bem que gostou. Aprender coisas novas é sempre bom. Mas, não era esse o objetivo de Apolo, ser um mero professor de metodologias. Queria mais. Só que a ficha não caiu. Cassandra não entendeu ou não quis entender. E Apolo, vingativo, lançou-lhe uma maldição. A menina, agora já moça, continuaria a profetizar eventos de toda ordem, mas ninguém, jamais, acreditaria nas suas previsões. Jogaria palavras ao vento. A partir daí, Cassandra passou a vagar pelo reino, prenunciando as desgraças e tragédias que estavam por acontecer, mas ninguém, ninguém jamais mesmo, a levaria a sério outra vez. Virou uma louca mansa e histérica, pessimista incorrigível, que só via desgraça em tudo que olhava, até o fim.

A história é essa. E nos lembramos dela quando começamos a pensar sobre o mundo que nos espreita. Somos capazes de ouvir as vozes dos deuses. A todo instante escutamos as notícias que nos chegam. Somos capazes de processar essas informações e prever os cenários onde amanhã estaremos atuando. E somos tolos o bastante para advertir os mais próximos sobre o que está por acontecer. Mas estamos condenados à maldição que recaiu sobre Cassandra. Somos impotentes, como ela, para modificar a história.

Não há nada do que está acontecendo hoje no mundo que não tenha sido, incansavelmente, prenunciado por alguém que tinha o dom de ouvir as vozes dos deuses. Não há nada do que está acontecendo na África e que ainda vai acontecer, que não tenha sido e não venha sendo prenunciado aos quatro ventos. Não há nada do que esteja acontecendo hoje na América do Sul, que não tenha sido resenhado por um bom observador da realidade. Não há nadica de nada do que acontece hoje no Brasil que não tenha sido, por um e por todos, com um mínimo de bom senso, nada, nada mesmo, que não tenha sido já pressentido, previsto, descrito, dito e datado.

Agora, o que temo é a falta do medo, que antes sentia e não sinto mais. Escuto as vozes dos deuses. Como todos nós, costuro as palavras umas nas outras e, do desenho que surge delas, bordo os cenários que se prenunciam. Mas, diferente de Cassandra, já não fico histérica com o que vejo. Já não temo a sorte que nos atropela no meio da rua. Estou imune ao desespero. Conformada com o papel que a maldição de Apolo nos reservou a todos, de profetas desacreditados do apocalipse. Vou curtir o fim de festa na beira da praia. Vou pular sete ondas e desejar, com todas as minhas forças, que os deuses, sempre misericordiosos, nos concedam o antídoto da maldição de Apolo. Desejar que, em algum tempo, que não seja tão distante assim, despertemos da nossa apatia e retomemos o controle do bonde da nossa história.

Vou fazer as malas.

Já que não adianta mesmo desesperar, boa distração a todos, belas aventuras e que, nas estradas dessa vida, encontrem melhores histórias para serem ouvidas e recontadas.

Hasta la vista!

3 comentários:

Anônimo disse...

Lindo texto, Patrícia, liiiiindo! Ótima analogia para falar da nossa impotência.

Anônimo disse...

Me enrolei aqui e não assinei o comentário. Sou eu, Patrícia, a Cristina Bicalho.

patricia duarte disse...

Eu saberia que é você, amiga. Brigadinha pela visita. A lembrança foi do Leo.