Foto: adivinhem?
Cuidado, a cidade nos observa. Está de olhos abertos, arregalados, acompanhando de perto nossa estranha movimentação. Enquanto nos arrastamos lentamente, dentro de nossos possantes mastodontes, ou corremos desavisados pelos labirintos congestionados de suas entranhas, ela nos espreita pacientemente. Mas como um balão de gás, que vai inflando, inflando, inflando até muito além do seu limite e acaba estourando, a tolerância cordial da nossa cidade pode também se esgotar. De uma hora para outra, a fina teia que nos mantém mais ou menos unidos, poderá se romper, nos lançando no vácuo da inexistência social ou nos prensando dentro de pequenos bolsões de sobrevivência precária e marginal. Como se já não estivéssemos.
Cruzo a cidade todos os dias, nos mesmos e nos mais diferentes horários. Atravesso-a por caminhos variados e também pelos rotineiros, que me levam sempre aos mesmos lugares. E vejo de tudo um pouco. Mas das suas misérias cotidianas, muitos já se ocupam. Sobra para mim falar do luxo rabugento da nossa imbecilizada classe motorizada, eu inclusive. O traçado de Belo Horizonte foi idealizado para o trânsito de carroças. São ruas estreitas, o suficiente apenas para alguém seguir e outro voltar. Agora demos de fazer caber dentro delas quatro fileiras de carros, se movimentando numa mesma direção, e, ainda assim, não tem sido suficiente para fazer o trânsito fluir. Pelo contrário.
Fecham ruas, mudam a mão de direção, desviam os carros para um lado, para o outro, mas no final acabamos todos engarrafados na próxima esquina. É assim que tem sido. Trajetos que percorria facilmente em vinte minutos, hoje não consigo, nem com muita reza, fechá-lo em menos de cansativos 40 minutos. Me arrasto desesperadamente pelas ruas da cidade, de olho no relógio do painel do carro, piscando a cada segundo. Eu e todo mundo. Lado a lado, mas isolados dentro de nossas trincheiras. Lado a lado, como numa procissão, mas sem nenhuma fé a nos unir.
E não há nem esperança de melhora. Pelo contrário. Enquanto aguardava uma oportunidade para seguir em frente, ouvi no CBN Brasil que a indústria automobilística brasileira está vendendo carros feito bananas. Teve um crescimento recorde no último mês de agosto, de mais de 30% em relação a igual período do ano anterior. Isso significou mais quase 400 mil veículos rodando por aí. As cidades, coitadas, tentam se adaptar. Inventam soluções: rodízio, áreas interditadas ao trânsito de veículos particulares, viadutos, mão invertida e outras panacéias. Tudo em vão.
As cidades se tornaram depósitos de lixo para problemas gerados globalmente, como diz Zygmunt Bauman, no seu livro Amor Líquido - Sobre a fragilidade dos laços humanos. Tanto aqui como no resto do mundo, as cidades deixaram de ser espaços comunitários, de convivência social, para se tornarem meros abrigos, mais ou menos seguros, para um bando de estranhos, que sobrevivem na incomunicabilidade de suas torres, protegidos por câmaras ocultas, alarmes sonoros, muros e cercas elétricas. Fortalezas indevassáveis, monumentos mudos espalhados pelas cidades.
Tanto aqui como no resto do mundo, precisamos cada vez mais dos nossos veículos particulares para transitarmos de uma torre a outra, de uma forma mais ou menos segura. Nossos carros são túneis envidraçados que se movem cortando a cidade de ponta a ponta. Dentro deles estamos protegidos dos milhões de outros estranhos que se vêem obrigados a fazer o mesmo trajeto, seja em carros-túneis como os nossos, seja dependurados em portas de ônibus, amontoados num vagão de um metrô ou de um trem qualquer. Quem primeiro vai abrir mão do seu possante, para dar bom dia ao estranho que viaja ao seu lado? E o balão vai inflando, inflando, inflando...
Bauman cita Manuel Castells para lembrar o paradoxo em que nos metemos: para resolvermos nossos problemas cotidianos, buscamos políticas cada vez mais locais num mundo estruturado por processos cada vez mais globais. Mas a política local - e em particular a política urbana - tornou-se desesperadamente sobrecarregada, como diz Bauman, e impotente para resolver nossos problemas, já que estes têm raízes fincadas na ordem global. Indefesas diante do furacão global, as pessoas se agarram a si mesmas, como diz Castells, e ao fazerem isso, aprofundam ainda mais a gravidade dos problemas urbanos. E o balão vai inflando, inflando, inflando...
Por isso, atenção, a cidade está de olho na nossa estranha movimentação. Quem vai primeiro abrir mão do seu possante para se sentar ao lado deste ilustre anônimo passageiro?
Uma finalzinho de semana antecipado no mais doce conforto de nossas fortalezas e longe dos arrastados e enfadonhos engarrafamentos.
Inté.
Cuidado, a cidade nos observa. Está de olhos abertos, arregalados, acompanhando de perto nossa estranha movimentação. Enquanto nos arrastamos lentamente, dentro de nossos possantes mastodontes, ou corremos desavisados pelos labirintos congestionados de suas entranhas, ela nos espreita pacientemente. Mas como um balão de gás, que vai inflando, inflando, inflando até muito além do seu limite e acaba estourando, a tolerância cordial da nossa cidade pode também se esgotar. De uma hora para outra, a fina teia que nos mantém mais ou menos unidos, poderá se romper, nos lançando no vácuo da inexistência social ou nos prensando dentro de pequenos bolsões de sobrevivência precária e marginal. Como se já não estivéssemos.
Cruzo a cidade todos os dias, nos mesmos e nos mais diferentes horários. Atravesso-a por caminhos variados e também pelos rotineiros, que me levam sempre aos mesmos lugares. E vejo de tudo um pouco. Mas das suas misérias cotidianas, muitos já se ocupam. Sobra para mim falar do luxo rabugento da nossa imbecilizada classe motorizada, eu inclusive. O traçado de Belo Horizonte foi idealizado para o trânsito de carroças. São ruas estreitas, o suficiente apenas para alguém seguir e outro voltar. Agora demos de fazer caber dentro delas quatro fileiras de carros, se movimentando numa mesma direção, e, ainda assim, não tem sido suficiente para fazer o trânsito fluir. Pelo contrário.
Fecham ruas, mudam a mão de direção, desviam os carros para um lado, para o outro, mas no final acabamos todos engarrafados na próxima esquina. É assim que tem sido. Trajetos que percorria facilmente em vinte minutos, hoje não consigo, nem com muita reza, fechá-lo em menos de cansativos 40 minutos. Me arrasto desesperadamente pelas ruas da cidade, de olho no relógio do painel do carro, piscando a cada segundo. Eu e todo mundo. Lado a lado, mas isolados dentro de nossas trincheiras. Lado a lado, como numa procissão, mas sem nenhuma fé a nos unir.
E não há nem esperança de melhora. Pelo contrário. Enquanto aguardava uma oportunidade para seguir em frente, ouvi no CBN Brasil que a indústria automobilística brasileira está vendendo carros feito bananas. Teve um crescimento recorde no último mês de agosto, de mais de 30% em relação a igual período do ano anterior. Isso significou mais quase 400 mil veículos rodando por aí. As cidades, coitadas, tentam se adaptar. Inventam soluções: rodízio, áreas interditadas ao trânsito de veículos particulares, viadutos, mão invertida e outras panacéias. Tudo em vão.
As cidades se tornaram depósitos de lixo para problemas gerados globalmente, como diz Zygmunt Bauman, no seu livro Amor Líquido - Sobre a fragilidade dos laços humanos. Tanto aqui como no resto do mundo, as cidades deixaram de ser espaços comunitários, de convivência social, para se tornarem meros abrigos, mais ou menos seguros, para um bando de estranhos, que sobrevivem na incomunicabilidade de suas torres, protegidos por câmaras ocultas, alarmes sonoros, muros e cercas elétricas. Fortalezas indevassáveis, monumentos mudos espalhados pelas cidades.
Tanto aqui como no resto do mundo, precisamos cada vez mais dos nossos veículos particulares para transitarmos de uma torre a outra, de uma forma mais ou menos segura. Nossos carros são túneis envidraçados que se movem cortando a cidade de ponta a ponta. Dentro deles estamos protegidos dos milhões de outros estranhos que se vêem obrigados a fazer o mesmo trajeto, seja em carros-túneis como os nossos, seja dependurados em portas de ônibus, amontoados num vagão de um metrô ou de um trem qualquer. Quem primeiro vai abrir mão do seu possante, para dar bom dia ao estranho que viaja ao seu lado? E o balão vai inflando, inflando, inflando...
Bauman cita Manuel Castells para lembrar o paradoxo em que nos metemos: para resolvermos nossos problemas cotidianos, buscamos políticas cada vez mais locais num mundo estruturado por processos cada vez mais globais. Mas a política local - e em particular a política urbana - tornou-se desesperadamente sobrecarregada, como diz Bauman, e impotente para resolver nossos problemas, já que estes têm raízes fincadas na ordem global. Indefesas diante do furacão global, as pessoas se agarram a si mesmas, como diz Castells, e ao fazerem isso, aprofundam ainda mais a gravidade dos problemas urbanos. E o balão vai inflando, inflando, inflando...
Por isso, atenção, a cidade está de olho na nossa estranha movimentação. Quem vai primeiro abrir mão do seu possante para se sentar ao lado deste ilustre anônimo passageiro?
Uma finalzinho de semana antecipado no mais doce conforto de nossas fortalezas e longe dos arrastados e enfadonhos engarrafamentos.
Inté.
3 comentários:
Patrícia, já leste Apocalipse Motorizado - A tirania do automóvel em um planeta poluído? (http://www.viaciclo.org.br/_antigo/paginas/apocalipse_motorizado.htm)Esse livro me fez trocar de carro! Troquei meu 2.0 por um 1.4 flex e estou pesquisando uma bicicleta para as distâncias curtas. Em breve adquiro (e espero, passo a utilizar). Sua análise é profunda e cheia de sentimento. Conseguistes colocar no papel com precisão uma impressão que muitos temos mas não sabemos como explicitar.
Rafael, ainda não li não, mas vou procurar saber. Valeu a dica.
Obrigada pela visita.
Fiz uma opção, Patrícia: carro nunca mais. Agora moro perto de tudo, ando a pé. Porque não dá para depender de transporte público: quaaando vem, vem lotado. Aproveite e tirei mais duas coisas da minha vida: empregada doméstica e cabelo comprido. E vou indo.
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