domingo, dezembro 23, 2007

A falta que a utopia nos faz

Consumi quase todo meu repertório de palavras neste final de ano. Mais grave, deixei escapar pela janela minhas idéias mais vagas sobre os assuntos mais diversos, para concentrá-las em meia dúzia de três ou quatro e assim dar conta do recado. Fiz quase igual D. Cappio, uma greve de sopa de letrinhas, e me dediquei exclusivamente àqueles pratos especialistas, com ingredientes exclusivos sobre um ou outro tema do mundo das idéias. Foi um grande sacrifício de final de ano. Acho que paguei todos os pecados que, inadvertidamente, cometi em 2007. Mas agora, como D. Cappio, encerrei o meu suplício. Estou de volta ao mundo da vida.

Na prova dos nove fora zero, acho que o resultado foi muito bom, melhor até do que esperava. O jejum de D. Cappio também não foi de todo em vão. Ainda que não tenha conseguido trazer de volta para a agenda democrática o tema da transposição do Rio São Francisco, a sua epopéia de 23 dias acionou o alarme de atenção para alguns probleminhas que ficaram buzinando ininterruptamente na minha cabeça, enquanto tinha de me concentrar em outras questões menores. D. Cappio se queixou ao bispo amigo de que Lula foi “muito insensível” durante o seu jejum e que o STF foi “subserviente” ao Executivo. Sob certo ponto de vista, pode até ser, mas fico pensando se o problema não seria anterior a essas reações.

Desde o início, uma coisa que me intrigou foi a insensibilidade da própria sociedade. Quando ouvi a notícia de que o bispo de Barra reiniciaria uma greve de fome em protesto contra as obras de transposição do rio e só voltaria a se alimentar quando o projeto estivesse engavetado, não me comovi. Sinceramente, não. Fiquei foi um pouco confusa e desconfiada. Lá vem o bispo de novo. O que será que ele sabe sobre esse projeto que nós não damos conta de saber? É claro que qualquer desvio de rio tem um impacto sobre o ambiente natural, mas é uma obra, guardada as devidas proporções, até banal. Qualquer Zé Mané faz um desvio aqui e outro ali para buscar água e poder cuidar do seu roçado. Isso desde muito tempo.

O São Francisco não é um córrego qualquer, evidentemente uma transposição das suas águas teria um impacto maior e, se o rio já está ameaçado, esse impacto teria conseqüências mais graves. Mas as tecnologias para controle dos efeitos perversos também não seriam mais eficientes hoje do que já foram em tempos passados? Ou não? Ou será pior? Será que não estariam sendo avaliados os impactos de uma obra desse porte num ambiente natural em transformação mais acelerada, em função das mudanças climáticas do planeta? Será que é nisso que o bispo estaria pensando? Será que é isso que ele sabe que nós não sabemos? Ou será que o uso dessa água é que não agrada ao bispo? Será mesmo que ela irá atender apenas os grandes produtores rurais e não a população pobre da região? Será que teríamos alternativas menos agressivas, mais baratas e mais eficientes?

Fiquei confusa, mas achei o assunto muito complicado para meter a minha colher de pau. Tem outras donas marias e zé manés que também pensam assim. Quando esse tema é jogado na mesa, muita gente desconversa. É, pois é. Não sei não, eu acho que é uma obra que pode dar certo. Ou não. Como é que é mesmo que isso será feito? É dinheiro que não acaba mais, hem? Enfim, comentários absolutamente descompremetidos. Então, quando D. Cappio chamou para si a luta em defesa do rio e contra o transposição, muita gente ficou é aliviada. Ele deve saber o que está fazendo. Mas o protesto solitário de um homem é muito pouco para uma sociedade de massa, de multidões, de megamovimentos, para uma sociedade que se diz democrática.

Não acho que o protesto de D. Cappio, para ser bem sucedido, deveria ter reunido milhares de pessoas a sua volta, com velas acesas, rezas, discursos inflamados e outras encenações ótimas para gerar imagens para televisão. Não é isso. Mas um movimento de mobilização social, para começar a dar certo, precisa ter um propósito comum, sob uma interpretação e um sentido também compartilhados, como nos ensina Bernardo Toro. Um propósito claro, compreensível por todos, de forma a que cada um se reconheça no movimento, se sinta responsável pelo problema e capaz de resolvê-lo com a sua participação. O engajamento num movimento dessa natureza é um ato de liberdade, de escolha, de vontade. É fruto da decisão de cada um.

E aí surge o primeiro grande problema. O ato de fé de D. Cappio não contribuiu para esclarecer todas as dimensões desse projeto. Seu protesto não conseguiu mobilizar, pelo menos na proporção que precisaria, a vontade da sociedade brasileira de, no mínimo, discutir esse tema. E não conseguiu justamente porque faltava e ainda falta informação, entendimento, clareza sobre o que significa a transposição de um rio do porte do São Francisco, de uma obra da extensão dessa que está prevista, para que cada um de nós pudéssemos nos posicionar com segurança e decidir se iríamos ou não apóia-la. A greve de D.Cappio poderia até ter sido uma oportunidade para que todas essas dúvidas fossem esclarecidas, de forma clara e transparente, mas não foi.

E aí surge o segundo grande problema. Uma democracia pressupõe participação. Numa democracia quase ideal, imaginamos que todos os grandes temas de interesse público deveriam ser postos em debate para que a sociedade, como um todo ou quase todo, pudesse conhecer os diversos aspectos da questão, opinar e se posicionar sobre cada um deles, diretamente, através de plebiscitos, referendos ou qualquer outro instrumento, ou através dos canais de participação popular, já adotados pelo parlamento brasileiro em várias casas legislativas. É claro que essa não é uma participação descomprometida, desinformada, construída no achismo de uma mesa de bar. Precisa ser uma participação qualificada, mas, não exclusiva dos especialistas. Precisa ser informada, comprometida e intencional. Precisa reunir o conhecimento disperso nas mãos de cada um dos segmentos envolvidos ou afetados pela decisão, numa grande síntese, que resultaria em posicionamentos diversos, mas todos e cada um plenamente consciente dos seus fundamentos.

E aí é que mora o perigo. A obra de transposição do rio São Francisco está sendo tratada meramente como uma obra de engenharia. Uma decisão técnica e não política, como deveria ser. Ora, uma obra de engenharia desse porte não é como levantar uma laje, que qualquer um em qualquer canto do Brasil se mete a fazer e, na maioria das vezes, dá certo. É um projeto altamente sofisticado, para especialistas doutores e não para nós, essa ralezada desinstruída que somos. Ou, mais delicadamente, essa não é uma discussão para nós, leigos no assunto. Mas será que é isso mesmo? Será que nossas decisões não são, em última instância, sempre decisões políticas? Embasadas, em parte sim, por conhecimentos técnicos, especialistas, mas também conhecimentos práticos, da vida, frutos de nossas experiências particulares? E será que não é possível traduzir esse conhecimento mais técnico em desenhos de fácil entendimento por nós, nós que não somos letrados em cálculos da engenharia civil? Será que não existem outros aspectos fundamentais desse projeto, que dizem respeito a todos nós, que precisariam ser também conhecidos e discutidos?

Se isso definitivamente não é possível, doravante, qualquer tema de grande interesse público que deveria ser discutido por todos, poderá ser, da mesma forma, decidido em gabinetes, por especialistas doutores. Não poderá? E sempre se justificará pela alta complexidade do tema e pela incapacidade da sociedade de acompanhar o debate. Não é um bom argumento? E quanto mais desinformados estamos, maior ainda será a assimetria informacional a que estaremos submetidos daqui pra frente, pois vivemos numa sociedade complexa, que gera problemas da mesma ordem de grandeza e qualidade, altamente complexas. Então, se não rompermos com esse vício, de supervalorizar o conhecimento especializado e subestimar o conhecimento popular, estaremos eternamente condenados à democracia monárquica do mundo contemporâneo. Aquela democracia desejada, de todos e para todos, será apenas uma idéia, mais ou menos boa, mas sempre para poucos e nunca para todos. Ou não?

Uma semana de volta ao verbo livre, leve e solto.
Mas antes disso, tenham paciência, não me venham querer polemizar justamente na ceia de Natal. Deixem isso para depois.
Um Natal em paz com todos, principalmente junto aqueles que são especiais para cada um de vocês.

Inté.

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