sábado, outubro 27, 2007

Carrossel voador

Foto: Vitória de Samotrácia na Praça da Liberdade
(minha)

A vida é um trem. São mais de 6 bilhões de locomotivas partindo em todas as direções. Às vezes elas se cruzam. Às vezes não. Às vezes páram em alguma estação. Alguns caem fora, outros embarcam, outros mudam de vagão, outros voltam. Mas a vida é um trem que segue sempre em frente. Acreditava nisso. Hoje tenho dúvidas. A vida está me parecendo mais um carrossel, que fica dando voltas, girando, girando, quase indo, mas quando parece que vai, volta sempre para o mesmo lugar. Girando.

Às vezes tenho essa impressão. Estou ali, mergulhada num momento presente qualquer e, de repente, me vem sensações absolutamente estranhas àquela situação, mas que me remetem a experiências passadas que insistem em permanecer vivas, como se retornassem desde sempre, no giro de um carrossel. É como se o tempo não existisse mesmo. O presente é só o passado revisitado. Reescrito mil vezes, se preciso for. O futuro é o passado idealizado, utopia pura. Não existe futuro na roda de um carrossel. Só um mesmo movimento no mesmo lugar. Girando.

Não é muito comum. A bem da verdade, é muito raro mas, às vezes, a força centrípeta, que nos aprisiona a um eixo de rotação e nos faz girar como um carrossel, se liberta da influência de seus vetores e nos lança no espaço. Por alguns segundos ficamos soltos no alto e olhamos a vida com se tivéssemos na mão uma possante lente panorâmica. Segundos. Um instante mínimo, mas o suficiente para termos a exata dimensão da vida e fazermos novas escolhas, as mesmas, que sejam, mas ainda assim novas, pois que revisitadas. Segundos.

Girar na roda de um carrossel e deixar a vida nos levar num eterno movimento circular em torno de uma mesma história. Mil vezes, reinventar o passado, até que dele surja um novo enredo. Ou vagar pelo espaço, espalhando lampejos de luz do olhar que lançamos sobre o mundo. Sobrevoar novos mares, semeando dúvidas na certeza dos timoneiros. Navegar em águas desconhecidas, como Vitória de Samotrácia, e colher lendas inéditas que inspirem novos jeitos de viver. E voar de novo, como Vitória de Samotrácia. Voar tão rapidamente, tão velozmente, que o vento nascido do bater de nossas asas corte todos os caminhos, espalhando-os em mil direções, fazendo surgir mil novas versões de todas as milhares de histórias que já vivemos. Segundos.

Uma semana de volta à órbita original, mil vezes renovadamente.

Inté

terça-feira, outubro 23, 2007

A vaca foi pro brejo

Depois que a Mattel, maior fabricante de brinquedos do mundo, anunciou um recall de 18,6 milhões de produtos, incluindo os acessórios da tenebrosa Barbie, do ingênuo Batman e das pequetitas Polly, todos transformados em armas mortais para destruir criancinhas indefesas, achei que nada mais pior do que isso poderia acontecer nesse mundo. Mas tenho de reconhecer: padeço de falta de criatividade, por isso não evoluo na vida. A imaginação da nossa classe empresarial, essa sim, não tem limites.

Vocês viram, meninas? Em vez de adicionar vitaminas, mais cálcio, ferro e outros ingredientes que ajudariam a turbinar o crescimento dos pimpolhos, deram de acrescentar ao leitinho de nossas crianças, soda cáustica e água oxigenada! Se estão pensando que vão resolver o problema da superpopulação do planeta provocando um infanticídio em série, podem tirar a vaquinha do sol. Doravante, estaremos sempre alertas!

Olhem só, meninas, vocês devem se lembrar disso. Na nossa época, quando queriam adulterar o leite e fazer a produção render um pouco mais, o máximo que se permitiam era adicionar um pouquinho de água mineral não gaseificada. Tudo bem, os mais relaxados, utilizavam água filtrada, mas depois sofriam horrores com dor na consciência. Tá certo, não era bem assim. Já não prestavam desde antes: acrescentavam qualquer coisa que fosse líquida e nem cuidavam da higiene da vaquinha, quando era chegada a hora da ordenha. E deixavam o leite azedando em latões enferrujados, expostos à visita de toda sorte de insetos e outros animais estranhos. Eca, odeio leite!

Mas vocês hão de concordar comigo: agora eles exageraram. A tal da Casmil está sendo acusada de adicionar ao nosso leite de cada dia uma coisa chamada peróxido de hidrogênio, vulgarmente conhecida como água oxigenada. Segundo os entendidos, essa é a famosa operação limpeza, pois a água oxigenada ajuda a disfarçar as más condições sanitárias de conservação e transporte da produção, enganando os compradores. Mas isso não é nada comparado aos efeitos dessa substância quando ingerida pelas crianças: além das dores no estômago e do risco que correm de morrer, os pequeninos já nascem com o cabelo parafinado e pedindo ao papi uma prancha de surf. É um pesadelo!

Não sei exatamente quais são os efeitos da soda cáustica, quando ingerida por uma criança, mas posso imaginar. Já vi embalagens desse produto no supermercado e todas elas vêm com uma caveira mal rabiscada, estampada no rótulo, que provoca até arrepios só de passarmos por perto. Presumo que, se ingerida, essa substância vai descer estômago adentro derretendo tudo que encontrar pela frente. Não vamos nos enganar, é isso mesmo que deve acontecer. Mas o estranho disso tudo, é o silêncio das cooperativas. Só a Parmalat veio a público dizer que é inocente. Mas quem ainda leva a Parmalat a sério? Acho que nem os bichinhos de pelúcia, quanto mais nossas criançinhas.

Uma amiga me disse que, a partir de agora, só vai comprar leite em pó. Santa ingenuidade, amiga. Faz pouco mais de três anos, a Polícia Federal prendeu uma quadrilha que agia exatamente da mesma forma, mas utilizando como base o leite em pó. Cogitei o leite de soja, mas não passou no teste dos meus meninos. Eles já experimentaram e reprovaram no primeiro gole. E acho que eles têm toda razão, embora discorde deles, quando sugerem para o desjejum matinal um copo de coca-cola gelada com batata sorriso. Uma vez, vimos no Mundo de Beckman o estrago que a coca faz num dente de leite ou num definitivo mesmo: em poucos dias, restam apenas uns caquinhos no fundo do copo. Um horror!

O que sei é que nossas crianças estão ficando cercadas. Estou desconfiada de que elas estão sendo vítimas de um complô. Mas essa turma ainda não conhece a nossa fúria indomável quando temos de sair em defesa de nossas crias. Acho que teremos de dar uma demonstração ou então que deus faça melhor.

Um alegre despertar para todos, regado a chá de hortelã, acompanhado de torradinhas cobertas de geléia de damasco.

domingo, outubro 21, 2007

Sala de cinema

O Márcio nos fez um convite: escolher cinco filmes que nos impressionaram ao longo da vida. Topei. Lá vai o primeiro:

Vi um filme uma vez que mudou a minha vida. É claro que há muito exagero nisso, mas posso dizer, com muita tranqüilidade, que é um filme que, constantemente, volta a tona e me inspira a buscar novas lentes, de diferentes cores, para olhar o mundo. Foi também o primeiro filme que vi e que me causou espanto. Me deixou perplexa pela sua beleza, originalidade e ousadia, pois era um filme que quase não tinha história e pouquíssimos diálogos.

Isso foi a tanto tempo, que já me esqueci o nome do filme, do diretor e de qualquer outra referência que pudesse me ajudar a reencontrá-lo. A única coisa que me lembro é que não era um longa metragem, mas um curta. Olha que coisa moderna! E que não era americano. Para ser absolutamente sincera, quando vi esse filme, não tinha a menor preocupação de me informar sobre todas essas coisas. Queria só ver a história. Se não estou muito equivocada, nessa época, estava na que hoje equivaleria à quinta ou sexta série. Mas esse foi o filme que me ensinou a admirar o cinema como uma arte maior.

Bom, a história é muito simples: um menino que, por alguma razão que não me lembro, resolve dar a volta ao mundo. Junto com dois ou três amigos, discutem uma forma de viabilizar esse projeto. E esse menino observa que o sol, quando nasce e até que se ponha, dá uma volta na terra. Se seguissem o sol durante um dia conseguiriam cumprir a missão. E todos concordam que é um bom plano. Essa é a história. O filme é o relato da viagem dos meninos. Claro que o máximo que eles conseguem é passear de um ponto a outro da cidade, mas é um filme de uma delicadeza indescritível e de uma beleza absurda.

Um detalhe do filme, que nunca me esqueci: durante a travessia, os meninos paravam em alguns pontos da cidade para marcar no mapa a posição em que se encontravam. E, para isso, precisavam olhar em direção ao sol. Para não correrem o risco de ficarem cegos, usavam cacos de vidro coloridos para olhar o sol e, como era divertido, usavam-nos também para olhar a cidade. Então, esse é o primeiro da minha lista de cinco.

Os outros não foram tão importantes assim, mas me impressionaram muito e até hoje me emocionam:

Hiroshima, meu amor, de Alain Resnais e roteiro de Marguerite Duras. O filme é de 1959, mas só fui vê-lo, evidentemente, bem mais tarde, lá pelos idos dos anos 80. È um filme triste, mas extremamente bonito. A fotografia é impressionantemente delicada. Não me lembro bem da história, mas o que guardei dela foi essa lembrança meio vaga das duas personagens centrais, uma atriz francesa e um arquiteto japonês, buscando incessantemente um sentido qualquer: para Hiroshima; para a vida de cada um; para o relacionamento dos dois e assim por diante. Resumiria o filme assim, numa palavra: busca. Bom, pelo menos foi isso que ficou para mim.

Apocalipse now, de Francis Ford Coppola. Um filme de 1979, uma obra prima. A interpretação que Marlon Brando faz do coronel Kurtz é fantástica; a cena dos helicópteros descendo numa praia do Camboja, ao som da Cavalgada das Valquírias, de Wagner, enquanto em terra os soldados aproveitavam para fazer surf, é também chocante. Afora essas e muitas outras, o filme me impressionou pela sua fotografia e pela sua música, que juntas dão o clima de horror, loucura, sonho e pesadelo que caracterizam essa obra de Coppola.

Blade Runner, de Ridley Scott. É um filme de 1982, mas continua atual até os dias de hoje, afinal, continuamos buscando, em vão, o significado da vida. A fotografia é maravilhosamente trágica, a música belíssima e os atores esplêndidos. Já vi Blade Runner tantas vezes que até já perdi a conta. Sempre que posso, revejo-o.

Pulp Fiction, de Quentin Tarantino. Esse é um filme mais recente, para não dizer que fiquei só na seção nostalgia. Mas, ainda assim, fazendo as contas direitinho, esse filme já está quase debutando. Que coisa, hem? Pulp Fiction me impressionou, primeiro, pela sua narrativa. É como se a história fosse um quebra-cabeça que estivesse sendo montado ali, na nossa frente. Vemos algumas peças sobre a mesa que vão e voltam e, aos poucos, vamos juntando-as até formar uma história. A atuação de John Travolta e Samuel L. Jackson são impressionantes, principalmente de Samuel Jackson. A música também é maravilhosa. Tenho o cd e escuto sempre.

Além desses, todos os de Bergman e de Felline e muitos outros e muito mais. Mas me pediram cinco e foram os cinco que mais rapidamente subiram à superfície.

Para todos, uma semana de boas histórias, bem enquadradas e com trilhas sonoras fantásticas .

Até quando for possível.

quinta-feira, outubro 18, 2007

Oh quão dessemelhantes somos!

Foto: Aniversário da Marina
(Minha)


Dizem que de perto todos nós somos meio loucos. Não discordo, mas diria de um outro jeito. De perto, todos nós somos diferentes. Mesmo que insistam em nos fazer parecer todos iguais, o como de nossas histórias, diria Lisbela, nos torna únicos e, em qualquer situação, insubstituíveis. Mas para os estatísticos, nossos enredos privados não têm nenhuma relevância, viram meros pontos percentuais na composição de perfis representativos da população, para as mais diversas finalidades.

Somos identificadas não pela nossa biografia, mas pela condição em que estamos no mundo. Mulheres, na faixa de 50 a 54 anos, com um nível de escolaridade acima do desejável, trabalhadoras, renda média ou um pouco mais que isso, casadas, mães de uma prole sob controle, eleitoras, consumidoras, leitoras medianas, ainda que bem acima da média nacional e assim por diante. Viramos quase uma mesma dentro dos grupos nos quais somos incluídas.

Somos vagamente definidas pelas pesquisas de opinião, quando nosso perfil se encaixa nas escolhas que uma mostra limitada da população se dispõe a revelar sobre os mais diversos temas. Não importa se o que nos oferecem é uma variedade absolutamente restrita de opções, nos classificam como favoráveis, desfavoráveis ou indiferentes a determinada situação ou objeto. Não importa se não conseguem captar as nuances do nosso pensamento, nos enquadram em grupos genéricos e afirmam tudo que não dissemos e nos fazem mais iguais ainda, ignorando solenemente todas as nossas diferenças.

Aí, quando acontece de nos encontrarmos num canto qualquer do país, quando acontece de nos sentarmos à mesa desarmadas e sem defesa, olhamo-nos desconfiadas e não nos reconhecemos. Desfiamos nossas histórias inéditas e tecemos opiniões originais sobre tudo que vemos e nada coincide com o diabo do perfil no qual fomos incluídas. Nos estranhamos e cismamos que existe uma porção qualquer de loucura em tudo que falamos ou escutamos. Mas não é isso. Não há sombra de loucura nas vivências que experimentamos. Só há particularidades. Exatamente aquelas que nos diferenciam e nos tornam uma cada qual e não a mesma junto com todas.

Ainda estava pensando nisso, quando vi bush, aquele que não teve coragem de assinar o Tratado de Kioto, bater boca com Vladimir Putin e advertir os demais governantes do mundo sob o risco de enfrentarmos uma terceira guerra mundial, caso o Irã venha a dominar a tecnologia de fabricação de armas nucleares. Vi ainda Recep Tayyip Erdogan comemorar a decisão do Parlamento turco, autorizando uma ofensiva militar daquele país contra curdos que mantêm bases de treinamento no Iraque. Vi Hillary, Condoleezza, Chávez, Sarkozy e outros menos vips.

Admito, minha tentação primeira foi a de achá-los todos iguais, mas se cada um é cada qual posso pelo menos dizer que todos repetem, desde sempre, o mesmo velho discurso rançoso dos poderes imperiais e, nessa repetição, acabam se tornando muito parecidos, ainda que dessemelhantes. Olham o mundo da mesma empoeirada janela de vidros embaçados. É uma pena.

Uma semana de descobertas para todos. Novas palavras, novos significados, novos ares, novas idéias.

Inté

domingo, outubro 07, 2007

Deveria


Foto: mal feita, mas fui eu mesma.


Esta semana deveria ter vindo aqui mais cedo e mais vezes para plantar algumas bandeiras, mas estava ocupada construindo idéias. Juntando palavras, colando umas nas outras até formar um conjunto harmonioso de linhas retas, uma página depois da outra, numa construção lógica e precisamente correta. Deveria ter vindo, mas não vim. Abandonei os birmaneses à sua própria sorte. Sei que não deveria ter feito isso, pois os birmaneses são quase crianças ainda e carecem de mãe, como todos nós. Sua população é formada em mais de um terço por meninos e meninas com menos de 15 anos. Crianças, na maioria desassistidas, como de resto toda a população. Myanmar é ainda o país mais pobre da região asiática e vive sob a burduna de um regime militar fortemente beligerante, apesar da oposição ter um movimento absolutamente pacífico. Foi mal Ko-Hitke.

Se isso serve de consolo, não abandonei só os birmaneses. Deixei mais gente sozinha não meio da caminhada. Deveria ter vindo aqui, para segurar a bandeira da Mobilização Nacional por Democracia e Transparência nas Concessões de TV e Rádio . Mas também não vim. Deixei a caravana passar e larguei minha bandeira no primeiro site que encontrei, só para carregar pedras e flores no mundo da vida. Isso acontece, podem ter certeza. Não vim, mas também não deletei essa causa. Gastei algum tempo maquinando sobre as redes de rádio e TV comunitárias, que acredito serão mais capazes de democratizar o processo da comunicação dos que as mídias de massa. E também elas carecem de mãe, pois estão da mesma forma abandonadas, aguardando uma política mais coerente que viabilize sua organização. Foi mal outra vez.

Deveria ter vindo aqui ainda para rodar a baiana com o presidente esquerdista do Equador, Rafael Correa, que defendeu o fechamento do Congresso daquele país, alegando que é muito difícil governar com os parlamentares que lá estão, escolhidos pelo voto direto, da mesma forma que Correa, nas eleições passadas. Não acho que seja fácil, como aqui também não é. Mas essa é a regra do jogo, se rompermos com os combinados no meio da partida, corremos o risco de embarcar numa canoa furada e cair bem no meio de um rio de águas turvas e agitadas. É desastre na certa. Nesse caso sou boba mesmo. Ainda acredito que é no parlamento que nossas vontades se encontram e é lá também que, por meio da palavra e das idéias, dialogamos com nossos contrários até encontrarmos uma negociação possível. Tenho pra mim que o parlamento é a alma da democracia, sem ele viramos zumbis atormentados, vagando na escuridão da ignorância e da tirania. Deveria ter vindo, com certeza, mas perdi o trem da história.

Outra bandeira que escapuliu das minhas mãos, enquanto debulhava novas palavras no dicionário, foi a do movimento em defesa da floresta amazônica. Mesmo vendo o fogo se alastrar mundo afora, mesmo sentindo o calor nos sufocar e percebendo claramente as mudanças do clima, a cada nova estação, deixei cair essa bandeira e nem olhei pra trás, pra tentar recuperá-la. Deveria ter vindo aqui dar o meu apoio ao Pacto pela Valorização da Floresta e pelo Fim do Desmatamento na Amazônia. Mas também não vim. Faltou animus, no final da noite, depois da correria da semana inteira.

Essa próxima não será diferente. Vou dar um logoff geral para não ficar tentada a divagar nas ondas do meu pensamento. Nem vamos para o litoral. Vamos é embrenhar pelo interior paulista a dentro, mergulhar na vida real e sair de nariz tampado, mas muito melhores do que antes, com certeza. Outro dia, quando der, volto para plantar bandeiras, quem sabe elas florescem nessa primavera.

Uma semana com aroma de laranjeira para todos.
Inté.

segunda-feira, outubro 01, 2007

Tá na hora

Foto: Tirada no dia 29 de setembro de 2007!
(Minha)

Meninas, olhem quem eu vi na rua ontem! Vocês reconhecem? De duas, uma. Ou perdi alguma coisa ou a turma pirou na batatinha. Fiquei tão desorientada quando o vi ali, sentadinho no telhado de um sobrado da Contorno, que vasculhei desesperadamente minha agenda, para conferir se não estaria atrasada alguns dias no meu calendário. Tive semanas bastante tumultuadas nos últimos tempos e seria muito razoável se isso tivesse acontecido. Mas não, o tempo não rolou ladeira abaixo. Como em todos os anos anteriores, continuamos no início de outubro Nem passamos pela semana da criança. Sobrou, então, só a segunda opção.

E não é de hoje mesmo que estou percebendo a fúria gananciosa dessa turma. Daqui a pouco vão fazer igual a um amigo do meu menino, já não mais tão menino assim. Eles participam de um fórum na internet e, quando chega a época do natal, sempre disputam quem primeiro vai customizar o seu avatar com um chapeuzinho vermelho de Papai Noel. Aliás, disputavam, pois, desde 2005, um dos membros do grupo adotou o avatar do natal e assinou embaixo: Coelho Morto - Desde 2005 com o chapéu de Papai Noel. Acabou a polêmica.

De uma certa forma, na vida real, também já superamos essa polêmica. Essa turma nos mobiliza o ano inteiro, independentemente de datas especiais. Segundo pesquisas divulgadas não me lembro onde, estamos submetidos a mais de 3 mil apelos publicitários por dia, desde a hora em que acordamos até a hora em que nos deitamos. Nos pedem para comprar qualquer coisa, de preferência, tudo: de alfinetes com cabeça colorida até coberturas duplex com vista definitiva para a mata preservada de não sei onde. E não contentes em nos vender produtos, agora nos oferecem descaradamente até sentimentos: felicidade, alegria, amor podem ser adquiridos em suaves prestações até no mercadinho da esquina.

As mensagem nos cercam de todos os lados. Transitam dos outdoors e empenas espalhadas pela cidade, para os anúncios convencionais, multiplicados em jornais, revistas, rádios e tevês. E se passamos ilesos, não mais. No primeiro sinal vermelho, nos entregam, em mãos, três ou quatro flyers coloridos, propagandeando qualquer besteira. Se driblamos o sinal, nos enviam pelo correio. São quase 20 malas diretas por semana, que invariavelmente jogamos no lixo, mas não sem antes matarmos a nossa curiosidade. Sempre lemos uma ou outra. Se estão com pressa, não fazem cerimônia, invadem a nossa caixa postal eletrônica como se estivessem em casa. Milhares, cruzando os oceanos em pouco minutos. Algumas caem no nosso correio. Muitas nem abrimos, mas sempre fica uma ou outra para contabilizarmos na nossa estatística: 1.876, 1.877, 1.878....

E não adianta fugir. As mensagens nos perseguem pela cidade, cruzando nosso caminho a toda hora, indiferentes ao trajeto que escolhemos: estão estampadas na janela dos ônibus, na porta de carros, nos postes, em faixas atravessadas nas ruas e em tabuletas carregadas por pobres famintos, que ficam zanzando de um lado para outro nas calçadas abarrotadas do centro. E se fechamos os olhos para não vê-las mais, um carro de som nos encontra na primeira esquina. E se tentamos nos abrigar num prédio mais próximo, logo na porta trombamos com um banner gigantesco e colorido, nos convidando para mais uma nova aquisição. Isso, para não falarmos de outras formas mais sutis de propaganda, travestidas de personagens de novelas, embutidas na etiqueta da roupa que vestimos, na embalagem dos produtos que já consumimos e assim ad infinitum. 2.998, 2.999, 3.000!

Mas, desse encontro inesperado com o velhinho, o que achei mais louco foi perceber que o mundo não gira para essa turma. Entra natal, sai natal e eles não caem na real. A Terra está desabando a nossa volta e essa turma não dá nem notícia. Mas os distraídos serão surpreendidos nessa próxima década. Isso é certo. Eles e bush, aquele que jamais terá oportunidade de assinar o Tratado de Kioto. Agora agiremos por conta própria. Não fui ver Peter Senge, mas me contaram tudo. E ele disse com todas as letras, repetindo o que os grandes empresários do mundo todo já disseram a ele, com todas as letras: não temos mais alternativa. Foi isso o que Peter Senge afirmou: ou mudamos o nosso padrão de consumo ou mudamos o nosso padrão de consumo.

Não é porque somos bonzinhos que faremos isso, nem porque somos ecologicamente corretos, mas porque não temos outra opção mesmo. O planeta não consegue mais repor seus recursos naturais na mesma proporção em que os consumimos. E as mudanças climáticas tornarão essa dificuldade mais grave ainda, principalmente no que se refere aos alimentos. Disso já sabemos. O que ainda não admitimos é que os anos de prosperidade estão chegando ao fim. A crise financeira, que está sendo cozinhada em banho-maria pelos bancos centrais, é apenas uma primeira fumaça bem longe no horizonte. Mas já podemos enxergar outros sinais.

Na semana passada, ouvi no rádio economistas de várias matizes explicando a origem da pressão inflacionária que já ameaça o mundo e, ainda que de leve, o nosso próprio Real. Não, dessa vez a culpa não é do Lula. A pressão vem de fora, provocada justamente por um desequilíbrio entre oferta e demanda de determinados produtos, como o leite, a carne bovina, o trigo e o milho. A origem desse desequilíbrio são as mudanças climáticas, que afetaram a produção dessas culturas e o bom desempenho dos empreendimentos agropecuários. Como as mudanças vão continuar e num ritmo acelerado, tornando mais instável ainda a relação entre oferta e demanda, o risco de enfrentarmos uma grave crise inflacionária, de âmbito planetário, não está fora da agenda.

Mas não é só isso. A pressão sobre os preços aumenta também em função da entrada no mercado de novas levas de consumidores, tanto dos países emergentes, quanto da China. E será impossível garantir a inclusão desses novos segmentos, mantendo-se o mesmo padrão de consumo que o mundo tem praticado, principalmente, a parte mais desenvolvida dele. Desconfio que essa seja a maior preocupação que ocupa o coração e a mente dos grandes empresários, amigos de Peter Senge. É o nó que querem desatar. Mas será impossível desfazê-lo, se não estivermos dispostos a mudarmos o nosso padrão de consumo para um modelo novo e sustentável.

Por isso achei extemporânea essa visão antecipada de Papai Noel. Já estamos atrasados para fazer as mudanças que se fazem necessárias e essa turma ainda nem percebeu que terão de rever também seus negócios e o próprio espírito que os inspira nas grandes datas. Ai, ai, viu?



Uma semaninha bem comportada para todos. Assim, Papai Noel poderá nos trazer boas idéias de presente de natal. Precisaremos delas, bem antes do que imaginávamos.
Inté.