Trilha alternativa: Pesar do mundo, com Caetano.
Hoje acordei politicamente incorreta. Acho que neste final de ano tive uma overdose de sorrisos e abraços. Agora acordei com vontade de rosnar. Nada como um dia após o outro. Estranhei tudo que, por acidente, estava mais perto de mim. Estranhei a cerca elétrica, as grades, as portas e janelas da minha casa. Quando foi mesmo que tivemos de construir essas muralhas para nos guardar do mundo lá de fora? Nem me lembro mais, mas não importa. Por mim, cimentava o jardim, que está todo florido, rodeava a grade com arame farpado e pregava uma placa: Cuidado! Cachorro bravo! Ainda armava alçapão na varanda para afastar os passarinhos, que me acordam todo dia zoando até eu levantar.
Estranhei os pivetes na rua. Um bando deles, descendo a rua rindo e fazendo palhaçadas. Riem do quê? Nem olhei, para que não se aproximassem, porque se me pedissem qualquer coisa, um copo d´água que fosse, rosnaria para eles também. Cansei de conversa fiada. É sempre o mesmo teatro. Fazem cara de triste, falam choramingando, apelam para nosso espírito cristão e vão indo até partir meu coração. Mas hoje rosno para todos eles.
Estranhei o gerente do supermercado, que veio todo gentil e sorridente anunciar as ofertas do dia. Desviei-me dele como o diabo da cruz. Uma, duas, três vezes. Será que ele não se cansa de fazer esse papel ridículo todas as manhãs? Será que ele não sabe que já desconfiamos da sua matemática compensatória, aumentando o preço de produtos que, inevitavelmente, teremos de levar, só para cobrir os descontos que nos oferecem nas perfumarias? Rosno para ele também, principalmente, se insistir em me perseguir nos corredores do supermercado.
Estranhei um motorista de carro, que vinha bem ao meu lado, e reduziu a marcha de repente só para um pedestre afoito atravessar a rua correndo. Não foi pelo susto que levei nem pelo meu reflexo, que também me fez reduzir a velocidade para o mesmo gaiato passar. Mas estranhei o motorista por ele não ter estranhado o pedestre que deveria ter tido mais paciência e aguardado disciplinadamente a sua vez de passar. Conheço essas manhas, porque também gosto de andar a pé. Sei muito bem que, para enfrentar o poder da máquina, os pedestres se fazem de bobo e se atiram na frente dos carros, certos de que serão salvos pelo bom senso. Às vezes se estrepam, mas só às vezes. Rosnei para os dois e fui embora.
Estranhei as músicas que tocavam no rádio. Uma seqüência de seis, todas iguais. A mesma escala de dó, onde alguém espera outro alguém que não vem ou que já foi. Porque não rosnam também? Aperto uma tecla e mudo para o noticiário. Tudo igual outra vez. Uma guerra, alguém que morreu, alguém que matou, alguém que roubou, um país que cresce, uma país que não cresce. Mudam-se apenas os lugares e os nomes, mas a história é a mesma. Nem rosno mais, porque nessa faixa todos já rosnam uns para os outros. Estou dispensada.
Mas, pensando bem, é melhor não perder o jeito. Rosno para Saddam Hussein, responsável pela morte de 148 xiitas na cidade de Dujail, em 1982. Rosno mais ainda e mais ferozmente para bush, responsável pela morte, em fardas americanas e apenas por enquanto, de mais de 3 mil soldados, em solo iraquiano. Rosno de longe para o Planalto e de perto para Justiça que arquivou a ação penal contra Paulo Maluf. Rosno para o Índice de Capacidades Básicas do Observatório da Cidadania, onde o Brasil ocupa o 82° lugar entre 162 países, apesar de ser a 15ª economia do mundo (ja fomos a 8ª, não fomos?). E por aí afora foi o dia inteiro. Eu, do meu canto, rosnando para o mundo.Ah!, nada como um dia para rosnar! Ao final dele, estamos desanuviados e novamente
Dias de sol, uma sombra generosa, debaixo de uma amendoeira, um vento salgado e uma água gelada para todos nós, porque estamos merecendo.
E hoje, que o anjinho da guarda vele pelos sonhos bons de todos vocês!