sábado, janeiro 21, 2006

O armário de Evo Morales

Meninas, voltei! Mas ainda estou fora do ar. Nestes últimos dois dias estou por conta de fazer o que havia me prometido no final do ano passado: a limpa! Só que, até agora, consegui arrumar apenas um mísero armário e me desfazer de apenas duas ou três sacolas de inutilidades. Na maioria roupas, as quais não tenho o menor apego. Mas arrumar armário é mais do que esvaziá-lo de roupas que não nos servem mais. É uma tarefa árdua, silenciosa e, no mais das vezes, solitária. Exige paciência e, mais que tudo, desprendimento.

Mas é impossível revirar nossas lembranças de olhos fechados e jogar tudo fora como se fosse lixo. No máximo, o que consigo, a duras penas, é me desvencilhar, pouco a pouco, de alguns, apenas alguns objetos que encontro no fundo de gavetas ou prateleiras. Dentro de caixas que estão dentro de outras caixas, escondidas atrás de mais caixas, no alto do maleiro. Apenas alguns. Aqueles que já deletamos de nossas histórias.

E não sem antes avaliar cuidadosamente o seu real significado. É tarefa para mais de dias. Uma caixinha de fósforos fiat lux vazia! O que pode ser uma caixinha de fósforos embrulhada num papel fantasia verde, com um losango amarelo no meio e um pedaço de palito colado com durex num de seus lados? Heemm? Definitivamente não é uma caixinha vazia de fósforos. Seria óbvio demais.

Claro, né gente! Aquela caixinha é ninguém mais e ninguém menos que Taffarel! Pois então, o goleiro da seleção brasileira de 98, mais tarde escalado para também defender o gol de Rafadani, num campeonato de futebol de botões. Isso foi no aniversário de seis anos do Rafael. Tudo bem, o Rafadani nem teve um desempenho assim muito brilhante. Talvez, e talvez com certeza, nem tenha se classificado para as semifinais. Mas o time representava a civilização de Rafaenglalândia, que sobreviveu por longos cinco anos nas fantásticas viagens de Rafael.

Como vocês podem perceber, ele nunca se contentou com pouco. Toda criança tem um amigo invisível. É com ele que dividem seus medos, angústias e ansiedades, além das brincadeiras. Dani tinha o Leinad, que vivia atrás do espelho e um dia foi embora, escapando por um cano do esgoto. Rafael tinha uma civilização inteira. Com deuses, imperadores, guerreiros, inimigos, manifestações culturais próprias, além de fauna e flora bem caracterizadas. Tudo documentado em mapas, desenhos e histórias que estão bem guardadas em outro armário.

Portanto, aquela não era uma simples caixa de fósforos vazia, pronta para ir pro lixo. É patrimônio de Rafaenglalândia, que deve ser preservado junto com outros registros desta civilização, pois fazem parte da história verdadeira de Rafael. Aliás, é ele quem futuramente deverá decidir sobre o que vai ou não para o lixo. O que pode ou não escapar pelo cano do esgoto. Ou o que precisa ser guardado, para que ele se reconheça, quando já tiver mudado de fase. O que ficará, como se fosse uma carteira de identidade ou o seu passaporte para percorrer a longa estrada da vida.

Pelo menos é assim que eu penso. Por isso também guardo a minha caixa com um monte de clips enferrujados, rótulos de garrafas de cerveja, pedaços de frases escritas em guardanapos de papel, cacos de vidro coloridos, fitinhas, cartõezinhos, santinhos, recortes de jornais, bottons (Quero votar para presidente! - vocês se lembram? hehehe) e outras bugigangas que parecem lixo. Mas só parecem.

Então. Estava nessa missão ingrata, de deletar arquivos alheios, e sem querer me lembrei de Evo Morales. Sem querer, não. Fui provocada. No meio dessa mexida, encontrei uma boneca de pano, que meu irmão me daria se tivesse voltado de Cochabomba (com ó mesmo!). Uma boneca que deve ter sido feita por uma índia quíchua ou aimará. E ela me fez lembrar de muitas coisas, porque uma história puxa outra. Me fez lembrar inclusive de Evo Morales e sua chompa. A Folha de São Paulo, na última edição de sábado, dedicou quase uma página do jornal para comentar a chompa de Evo e falar de como essa blusa de lã está virando moda na Europa. Tinha coisa mais importante pra dizer, não é não? Mas, vá lá, moda também é cultura.

Aí, fiquei pensando que Evo Morales não deve ter usado a sua velha chompa listrada só de charme, para criar uma nova tendência nas coleções de inverno. Evo está é remexendo o armário que guarda a história do povo boliviano. A sua história. Está tirando de dentro das caixas, que se escondem dentro de outras caixas e de outras e de outras as lembranças, os sonhos, as esperanças, as histórias vividas e inventadas de 70% dos 9,2 milhões de bolivianos.

Filhos, netos, bisnetos, tetranetos de quíchuas e aimarás que, até ontem, inexistiam sob o domínio de uma minoria. Claro, minoria descendente de europeus-ibéricos brancos que ocuparam a região por volta do século XVI. Não é um novo tipo de preconceito, como diz Vargas Llosa. Isso é fato. Fazer o quê? Pensem bem, 70% de sobreviventes, que é o que são, também de fato, pois só vamos encontrá-los lá, abaixo da linha da pobreza, onde estão resistindo estes anos todos. Dá-lhe Almanaque Abril! (rsrsrs).

Evo está, portanto, remexendo sua história. São retalhos que, rejuntados e bem costurados, vão revelar a identidade do seu povo. Um povo que, solenemente, também nós fizemos questão de ignorar. Missão árdua essa! Terão de decidir sozinhos sobre o que vai ou não para o lixo, o que pode ou não escapar pelo cano do esgoto, o que deve ou não ser deletado. E o que precisa ser preservado, para que nele se reconheçam. É fácil?

Então, fiquei pensando que Evo Morales não está mesmo fazendo moda. Isto está claro que não. O que ele está buscando é construir um sentido coletivo de futuro para 70% dos bolivianos, como diria Bernardo Toro. Um sentido que ajude esse povo tornar-se uma nação para não continuar sendo meramente um território habitado.

Uma chompa listrada bem quentinha pra vocês. Ainda devemos ter muitos invernos pela frente. Temo que sim.

PS: Meninas, adorei a visita. Vou postar novas fotos um dia desses. Tenho uma série só de pôr do sol (rsrsrs). Maick, fui lá no opastrame conferir. Adorei! Aproveitei para pôr a leitura em dia. Foi uma tarde inteira. Valeu! Todos, estamos terminando de montar a equipe do novo blog. Queria que estivesse pronta para amanhã, mas não será possível. De qualquer forma, aguardem-nos!

3 comentários:

Anônimo disse...

Patrícia,
lindo texto. A primeira parte, dos meninos, me calou fundo: jogo ou não jogo fora aquele pano de prato com a mãozinha de tinta tatuada? Jogo não, uai. Mas fazer a seleção é difícil mesmo, senão teríamos que ter uma casa só para os arquivos, mesmo os do coração. Faço essa seleção todo janeiro, e pelo jeito não sou só eu. Agora, você já notou o alívio que dá depois de jogar a tralha fora?...

Anônimo disse...

Errata:

onde se lê "anônimo" no comentário anterior, leia-se "Cristina".

Um beijo na segunda-feira bonita.

patricia duarte disse...

Ei Cris! Menina, estou com saudades de todos. Até parece que fiquei fora um ano, hem? rsrsrs. Tô até com saudade do batidão. Deve ser porque as férias valeram a pena. Amanhã estou de volta!

Olha só, depois que termino de arrumar um armário e consigo tirar de lá algumas sacolas, mesmo que só algumas e não muitas, sinto que tudo ficou mais leve. A casa fica mais leve, ganha espaço, sei lá. A gente fica mais leve, parece que nos livramos de quilos e quilos de pensamentos inúteis que ficam só fazendo peso na balança, né? Bom, ainda vou ver se consigo arrumar um último armário hoje. Aí vai ser o máximo!
Bjim. até amanhã.