domingo, agosto 05, 2007

Caixa de histórias

Foto: minha, mas é do Rolf, nosso cão amigo.

Esse é o Rolf. Hoje saímos para passear. Entramos numa rua, saímos em outra, descemos até a praça, rodamos, seguimos em frente, voltamos, entramos em outras ruas e retornamos para casa. É um bom amigo. Não foge das suas responsabilidades. Vigia a casa, brinca com os meninos, late para os passarinhos e nos faz companhia.

Enquanto caminhávamos, fui pensando como os cães aprendem rápido a fazer o que esperamos que eles façam. Nós já temos um pouco mais de dificuldade. Normalmente fazemos é o que nos dá na telha. E, ainda bem. Melhor mesmo que seja assim, embora devêssemos também assumir com mais freqüência as conseqüências de nossas escolhas. Isso é mais raro de acontecer.

Andamos mais um pouco e me lembrei de um documentário que assisti recentemente, no Canal Brasil, sobre a língua portuguesa. Era isso mesmo: Língua – Vida em Português, de Victor Lopes. Uma fotografia maravilhosa e uma edição muito cuidadosa. Vou assistir outra vez, quando der. Mas, agora, me lembrei de um jovem moçambicano que aparece no filme. Um jovem como os nossos mesmos, pois a globalização passa pela África também, embora não deixe nada por lá.

Não me lembro do nome dele, mas vejo-o claramente agora, cantando rap, andando nas ruas, olhando para o horizonte e sonhando. Esse menino, porque é só um menino mesmo, disse que gostaria de morar nos Estados Unidos, mas acho que estava zoando. Queria só uma vida melhor. Não disse isso com tristeza, não mesmo. Disse com a coragem de quem vai tentar. E eu acredito que ele conseguirá, não por conta de seus lindos olhos negros, mas porque sua história me permitiu pensar assim.

Esse menino, que queria morar nos Estados Unidos, conheceu uma menina, que também tinha a cabecinha apinhada de sonhos e um sorriso do tamanho do mundo. Os dois namoraram, claro, e ficaram, claro e, destemidos, não se preveniram, claro. Mas o menino não contou isso nem com orgulho nem com deboche nem com vergonha. Simplesmente falou e disse qualquer coisa mais ou menos assim: plantei uma semente sem ter água para regá-la. Agora tenho de assumir minha irresponsabilidade, mas será um miúdo muito bonito e tudo acabará bem.

Andei mais um pouco e me lembrei de Mia Couto e das ruas da sua Moçambique. Lembrei dos contadores de história, que ele conheceu lá na sua infância, nessas ruas povoadas de áfrica. Esses narradores de sonho contam que as histórias ficam guardadas em uma caixa muito antiga, entregue ao primeiro homem e à primeira mulher do mundo. Assim, quando terminam de contar sua história, guardam-na de volta na caixa. Ao final da narrativa, sempre repetem: ...e tu, história, tu voltas novamente para a caixa do primeiro homem. É assim que se fecha uma história. Se ela fica aberta, as pessoas que a estão ouvindo ficam doentes. Não sei bem qual enfermidade poderá contaminá-las, mas já sei que às vezes isso é bom, às vezes é muito mal.

Por isso, já quase chegando em casa, passaram como um vento pela minha cabeça, as repetidas histórias que temos ouvido ultimamente. Histórias mal contadas, histórias pela metade, que ninguém sabe onde começaram e nem porquê começaram e, menos ainda, como e se irão terminar um dia. Histórias que se embrenharam por outras histórias, misturaram seus personagens, desfizeram o fio que nos conduzia e nos deixaram perdidos no meio de palavra nenhuma. São tantas do planalto central, que mais parecem um seriado. São outras tantas de crise, se repetindo numa freqüência tão regular, que, parece, também não terão mais fim. Crise da segurança, crise das penitenciárias, crise do aquecimento global, crise do futebol, crise do apagão aéreo e, agora, já prometem, a crise da energia.

Mas continuei seguindo o meu caminho. E fui subindo a rua e pensando se não é que deixamos abertas nossas histórias e agora estamos doentes de versões mal contadas. Fui andando e pensando se não precisávamos retomá-las, uma por uma, e fechá-las, cada uma de uma vez, retornando-as para a caixa, na qual deve estar guardada nossa própria história. Pensando que se, para isso, não precisávamos terminar de contá-las. E, para chegar ao fim, se não precisávamos que seus personagens assumissem as irresponsabilidades que cometeram em cada um desses diferentes enredos.

E já quase no portão de casa, pensei de novo no jovem moçambicano. De onde será que ele tira sua coragem, se não dos sonhos que ainda é capaz de sonhar? E pensei nos zumbis de nossas histórias mal contadas, que não dormem e nem sonham mais. Nem hoje e talvez nem nunca sonharam. E de tão covardes que se tornaram, se escondem um atrás do outro, um atrás do outro, um atrás do outro, numa cadeia interminável. Sem fim, nossas histórias permanecem eternamente abertas, deixando enfermos, para todo sempre, cada um de nós.

Como viram, andei sobre um mar de pensamentos, que vieram em ondas encavaladas, que quase me jogaram no chão.

Mas agora, fechando a minha história, uma semana de mar bem manso para todos! Tomara que essas histórias mal contadas encontrem logo o seu final e possam ser fechadas para, finalmente, delas nos livrarmos.

Um comentário:

Lais Mouriê disse...

Os cães, tão mágicos e amigos que há momentos que invejo suas almas.

Obs: Patty, te adicionei entre meus blogs preferidos, tá?

Bjus