sábado, agosto 25, 2007

Quando eu crescer

Já decidi. Quando crescer, vou morar em São Paulo, o país menos violento do Brasil. Desconfio que não seja, mas que o Heródoto Barbeiro e o coronel José Vicente tentaram nos convencer disso outro dia, acho que tentaram. O coronel José Vicente é consultor em segurança pública e ex-secretário de Segurança de São Paulo, como Heródoto bem frisou, e conhece esse assunto até de trás pra frente. Não sei se conseguiram convencer todo mundo, mas estatisticamente nos provaram isso. Já é alguma coisa. Por isso, quando crescer vou morar em São Paulo.

O coronel José Vicente demonstrou que o número de homicídios por cada grupo de 100 mil pessoas em São Paulo é o menor do Brasil. Fica em torno de 10, próximo dos 6 ou qualquer coisa assim de Nova Iorque e bem abaixo dos 20 do Rio de Janeiro e quase 32 do Brasil. Não estou bem certa dos números, porque essa entrevista já foi há dias, só que estive viajando e não pude passar por aqui. Aí a gente esquece, não tem jeito. Mas a ordem de grandeza é essa mesma.

Como estava insegura com os números, resolvi pesquisar na internet para ver se encontrava alguma prova dessa tese e, de fato, encontrei um estudo do mesmo coronel José Vicente, sobre a violência no Rio de Janeiro, no qual dedica um capítulo só para São Paulo - O exemplo paulista - onde reafirma tudo que disse no ar. São Paulo, segundo o estudo, está se tornando referência internacional de sucesso na redução da violência pela queda significativa dos homicídios em quase todas as suas cidades. Segundo o coronel, isso não é natural num país violento como o Brasil e nem seria de se esperar numa cidade gigantesca como São Paulo.

Mas foi isso o que os números disseram. Na capital federal de São Paulo, onde foram registrados 2.864 homicídios dolosos em 1986, o total registrado 20 anos depois, em 2006, foi de 2.056, com um população acrescida de dois milhões de habitantes. Nuba! O índice de 31,5 mortos por cem mil habitantes em 1986 caiu para 19,6. No Estado esse coeficiente é menor ainda, de 15,2. Os mesmos indicadores aplicados no Rio de Janeiro são em torno de 150% maiores. Os números são diferentes do que ouvi no rádio, mas dão a mesma idéia.

Acho que em Minas Gerais estamos numa situação melhor, mas, como diz o meu consultor para assuntos aleatórios, proporcionalmente falando, São Paulo deve estar, de fato, numa condição mais favorável. Se considerarmos o tamanho da população de um Estado e outro e o número de registros violentos, São Paulo pode tranquilamente apresentar um desempenho melhor. É o milagre da estatística. Até me esqueci de todos aqueles episódios, no centro da capital federal de São Paulo, envolvendo polícia, bandidos e pacatos cidadãos. Esqueci do noticiário recente e das manchetes que li na internet, antes de começar a redigir esse texto.

Esqueci de tudo mesmo e por isso tive essa idéia: quando crescer, vou morar em São Paulo. Mas não vou para a capital federal, porque lá tem muito congestionamento de trânsito e isso me mata aos poucos. Vou para o interior. Para Bauru, por exemplo. Estive lá essa última semana e achei a cidade muito moderna, com ares de cidade grande. Bem mais plana que as cidades montanhosas de Minas. Me pareceu também uma cidade bem rica. Mas isso não muda sua condição de cidade do interior, só que sem os defeitos de uma metrópole. Tem largas avenidas, prédios de bom tamanho e um povo educado e acolhedor. Não hospitaleiro, como os mineiros do nosso interior, mas cordiais, sem dúvida.

Olhem se não estou dizendo a verdade:

Fotos: todas minhas.
Essá é a avenida Nações Unidas. Acho que é a principal da cidade.

E Bauru é também uma referência internacional. É lá que funciona o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo, mais conhecido como Centrinho. O hospital é referência na América Latina para o tratamento de crianças que nascem, por exemplo, com fenda lábio palatal. Não saberia listar todos os outros tipos de atendimento que são feitos no Centrinho, mas o número de pacientes matriculados no hospital nos últimos 40 anos já chega a mais de 65 mil. Segundo me informaram, são realizadas no Centrinho mais de 750 cirurgias por mês, boa parte delas de fechamento de fenda lábio palatal ou plásticas posteriores demandadas pelos mesmos pacientes. Não é pouca coisa, se pensarmos que atuam numa área de especialidade bem definida.

Um dos prédios do Centrinho. O mais fotogênico

O teto de um dos corredores do Centrinho.
O mais futurístico de todos.

E tem mais uma coisa que Bauru tem e nenhuma outra cidade do Brasil tem: o legítimo sanduíche bauru! É quase um pecado mortal ir até lá e não provar o verdadeiro bauru do Skinão. É engraçado, porque o sanduíche não é, vamos dizer assim, um fruto da terra. Foi inventado em 1934, em São Paulo. Mas foi um estudante de Direito bauruense, Casemiro Pinto Neto, que tinha o apelido de Bauru, que juntou os ingredientes e batizou a mistura de bauru. Um dia passou a receita para o cozinheiro do Ponto Chic, um restaurante de São Paulo, e o sanduíche fez tanto sucesso que entrou imediatamente para o cardápio do restaurante.

A partir daí surgiram várias versões do bauru, mas a verdadeira receita é bem simples: pão francês, bem fresquinho e crocante, sem miolo, rodelas de tomate, fatias de pepino em conserva, rosbife e queijo derretido em banho-maria. Já testei a receita em casa e deu certinho. Mas tive de perguntar tudo, porque alguns ingredientes deixam dúvidas. Rosbife, por exemplo. Conheço o rosbife de contra-filet, frito na frigideira, bem passado por fora e sangrando por dentro. Mas o rosbife do bauru é de lagarto e não sangra. O queijo também não é qualquer um. No susto, usaria queijo de Minas, que deve ficar bom também, mas o certo é a mussarela. Detalhe importante: tem de ser mussarela de qualidade, caso contrário não dá liga. Agora, o segredo mesmo é derreter o queijo em banho-maria. Mas, crianças, não tentem fazer isso em casa sozinhas, porque é muito perigoso.


O difícil aqui é arrumar mesa. Mas vale a espera.

Os mestres da cozinha, preparando o nosso verdadeiro bauru.


E o bauru chegou!
Não é muito fotogênico, falta um pouco de verde, mas é delicioso!

Bauru, com certeza, deve ter muitas outras qualidades, além dessas que citei. Fiquei sabendo, por exemplo, que lá tem uma fábrica da Tilibra. Como adoro cadernos, pensei até de encontrar uma loja com séries exclusivas da Tilibra, mas isso não vi por lá. O que vi e nunca vou me esquecer é um laranjal fantástico, no caminho do aeroporto. Quando passamos por ele, o carro ficou todo perfumado. Aquele cheirinho de flor de laranjeira durou todo o resto do trajeto. Foi uma experiência inesquecível!

O laranjal fica do outro lado da estrada, mas em frente a esse ipê florido.

Uma parede do aeroporto, azul da cor do céu de Bauru.

Por isso, quando crescer vou morar em São Paulo, mas não na capital federal. Vou para o interior, talvez Bauru. Quem sabe? Mas só quando eu crescer!

Um fim de semana perfumado para todos, com um lanchinho especial no fim do dia. Se quiserem experimentar, tentem o legítimo bauru. Vale a pena.

Inté de novo.

domingo, agosto 19, 2007

A rainha do lar

Meninas, desistam. Em menos de duas gerações, fizemos uma revolução nas nossas vidas, mas no mundo, nada mudou. A terra continua girando em torno do sol; o boi no pasto, ruminando o capim; o galo cocoricando no galinheiro; e o cachorro latindo no quintal. Isso para não falarmos do leite entornando no fogão, quando nos viramos para pegar a leiteira, que sempre esquecemos do outro lado da pia. Tudo como dantes no quartel de Abrantes.

Não vou nem comentar a pesquisa do IBGE, divulgada essa semana, sobre a quantas anda a divisão do trabalho doméstico nos lares brasileiros. É discorrer sobre o óbvio. Mas uma coisa me deixou muito intrigada e outra revoltada. Mesmo trabalhando fora, cuidando da casa, da família e reservando oito horas de sono por dia, nós ainda dispomos, segundo o cálculo dos pesquisadores, de quatro horas livres, diariamente, só para cuidarmos de nós mesmas.

Ouvi esse dado no noticiário do CBN Brasil. Achei exagerado. Mas a repórter ainda se deu ao trabalho de explicar: são quatro horas por dia para cuidarmos da nossa higiene pessoal, para lermos um livro, um jornal, para ouvirmos música, cantarmos, dançarmos e essas coisas. Não disse? Como não podemos deixar de tomar banho, ir ao banheiro, escolher uma roupa para irmos trabalhar, pentear o cabelo e assim por diante, dessas quatro horas, descontaria, sem nenhuma cerimônia, pelo menos uma hora e meia. Ou seja, na prática, temos duas horas e meia livres de tudo.

Mas não é com isso que fiquei intrigada. De noite, quando cheguei em casa, fui conferir a notícia e os dados para ter certeza dos meus direitos. Duas horas e meia não são lá essas coisas, mas já é um tempinho bom para nos dedicarmos ao nobre ofício de fazer nada. Só que, aí sim, a surpresa! Não encontrei mais essa informação em lugar nenhum, nem no site do IBGE! Está certo que não baixei o arquivo da pesquisa, não ia gastar as minhas preciosas duas horas e meia fuçando o site do IBGE, atrás de planilhas de dados, né? Fui no texto publicado na página principal. E lá não está.

Vocês estão pensando o que eu estou pensando? Eu já estou é imaginando o complô dos pesquisadores. Eles ali, em volta da mesa, fazendo conta, refazendo, rodando planilha uma, duas, três vezes até as colunas ficarem certinhas e ali, naquele jogo pesado, doidinhos por uma latinha de coca-cola bem gelada e um hambúrguer chiando de tão quentinho, mas nada. Eles ali, fazendo conta e pensando na mulherzinha deles bem tranqüila, chegando em casa do trabalho, tirando o salto 5,5, jogando a bolsa no sofá e se esticando preguiçosamente na poltrona verde da sala, zen de tudo.

Claro que essa imagem não surgiria impunemente! Com um click, deletaram a informação do relatório. Quatro horas é um exagero! - concordaram todos. E em ato contínuo, um deles já pegou o celular, ligou para mulher e, com aquela vozinha de bichinho carente, foi convencendo a outra a passar no Eddie e levar quatro hamburguers e coquinha gelada para todos. E ela vai, não tenham dúvida, que vamos. Assim, lá se foram as duas horas e meia! Deve ter sido isso o que aconteceu.

E a revolta veio no dia seguinte. Abri a Folha de São Paulo e a pesquisa estava lá. As quatro horas nada! Sumiram misteriosamente. Acho que, para compensar, incluíram um quadro com dados de um outro estudo, de duas economistas da UFRJ, sobre os fatores que têm maior impacto na inserção profissional da mulher. Marido e filhos, segundo as pesquisadoras, são problemas. Não sei o que elas quiseram dizer com isso, mas, enfim, dão trabalho mesmo, só que as alegrias compensam.

Depois, citaram várias estatísticas sobre vários outros aspectos. Eu já estava me achando, né? Afinal, a luta não foi em vão. Estamos conseguindo nos manter no mercado de trabalho, mesmo com salários mais aviltados; estamos conseguindo tocar os afazeres domésticos, mesmo deixando o leite entornar quase todas as manhãs; estamos cuidando bem da família, mesmo que às vezes reclamem um pouco do nosso humor; e ainda arrumamos duas horas e meia para lermos, estudarmos, nos informarmos e assim por diante.

Mas aí veio a grande revelação! Vocês acham, meninas, que chegamos onde estamos por conta apenas do nosso esforço, do nosso empenho, das nossas múltiplas habilidades, da nossa inquestionável competência? Acham mesmo, meninas? Que ingenuidade a nossa! Como fomos ser tão vaidosas assim de acreditarmos nesse conto da carochinha? Nadica de nada disso, meninas! Segundo as pesquisadoras da UFRJ, o item de maior impacto no nosso bom desempenho profissional, aquele a quem ficamos devendo uma, pasmem!, é a máquina de lavar! Isso mesmo. A fantástica, a fabulosa, a insubstituível máquina de lavar!






Meninas, lamento, mas esse é um dado de pesquisa, é o resultado de um trabalho científico, deve estar corretíssimo. Vamos assumir a derrota, perdemos a nossa coroa e o manto de rainhas do lar e perdemos vergonhosamente para um amontoado de plásticos e engrenagens, fazer o quê? Agora, tem uma coisa. Quero ver eles ligarem para uma brastemp e pedir a ela para levar a coquinha e o hambúrguer lá no escritório, porque eles estão mortos de trabalhar e varados de fome! Quero ver!

Um domingão com 16 horas de sossego, além das oito de sono, para todas vocês. Se alguém tentar tirá-las do sossego, sugira docemente que procure a brastemp mais próxima!

Até de repente, mas não tão cedo!

sábado, agosto 11, 2007

Não creio em bush, mas que ele existe, existe!

Hora de bagunçar a cena. De por as informações em desordem. De espalhar os fatos sobre um tapete verde e depois sacudi-los na janela do mundo. O feng shui nos aconselha a não guardar notícia velha, especialmente as ruins, porque provocam reumatismo. Melhor soltá-las ao vento. Deixá-las flutuar sobre a cidade até que peguem uma corrente. Deixá-las subir até o topo de uma montanha para depois escorregar até o mar e por lá ficar. Bem fundo, no fundo mais fundo das águas do oceano.

Vi o bush, aquele que nunca assinou o tratado de Kioto. Agora quer patrocinar um acordão para vender tecnologia limpa aos países emergentes. Negócios, apenas negócios. Queria que alguém me respondesse qual o impacto da guerra no aquecimento global. Qual o impacto da explosão de um carro bomba, no centro de Bagdá, sobre a qualidade do ar. E de dez? E de cem? E de mil? Quantas bombas serão necessárias para levantar uma nuvem de poeira, contaminada por milhões de partículas envenenadas? Quantas árvores bush terá que plantar para compensar os estragos que está fazendo no Iraque? Mil? Cem mil? Uma floresta amazônica? bush não toma conhecimento disso, está ocupado agora em acalmar os investidores. Foi à TV para dizer ao mundo que está no comando, que podemos dormir em paz.

Quem leva bush a sério? Pelo visto, nem os mercados. Continuaram rolando ladeira abaixo. William Gann, o maior especulador da Bolsa de Nova Iorque do início do século passado, dizia que o mercado é movido por duas forças: o medo e a ganância. A gula voraz dos especuladores já conhecemos. O medo é o pesadelo que os atormenta nesta noite. Se tentarem fugir, quanto mais rápido correrem, mais intensa será a crise. Se fingirem de morto, ela virá em passos lentos, mas nem por isso menos avassaladora. Se tomarem de coragem e decidirem enfrentar o medo, o risco é nitroglicerina pura. O beco é sem saída.

Quem leva bush a sério? Pelo visto, nem ele mesmo. Ou será que é bush quem não nos leva a sério e vice-versa? Recapitulando: em março de 2003, contrariando o parecer do Conselho de Segurança da ONU, bush e seus asseclas invadiram o Iraque, com a desculpa esfarrapada de que precisavam investigar o arsenal de armas de destruição em massa que seria mantido por Saddam Hussein. Ninguém acreditou, mas não teve importância. Eles invadiram assim mesmo.

Passaram-se quatro anos. O saldo da brincadeira: US$ 300 bilhões do Tesouro americano jogados no lixo da história, isso considerando as estimativas mais contidas. 50 mil civis e cerca de 2 mil soldados com uniformes americanos, todos mortos. Onde estão as mães desses meninos fardados? Provavelmente, não nos Estados Unidos, mas espalhadas mundo afora, especialmente, nos países excluídos do mapa, pois não conseguimos nem ouvir o choro dessas mulheres. Nem delas, nem das mães iraquianas. O Iraque também não existe mais, mas, paradoxalmente, permanece de pé.

bush e sua turma armaram uma grande confusão, disseminaram a discórdia, espalharam o medo e o horror, o mais medonho de todos, e, agora, cansaram! Querem ir pra casa. Como? Simples. Chamaram a ONU de volta e deram a ela a nobre missão de por ordem na casa: reconciliar os grupos rivais no país e angariar apoio dos vizinhos, leia-se Irã, para ajudá-la a lidar com a crise humanitária que eles mesmo instalaram na região. E ainda tiveram o desplante de dizer, olhando nos olhos, que a ONU deveria assumir um papel mais determinante para trazer paz ao Iraque. Sacaram? Ontem mesmo, sexta-feira, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas já tinha aprovado, por unanimidade, a resolução que determina a expansão do papel da instituição no Iraque. Entrou num beco sem saída.

Mas essas são todas notícias velhas. Já estão correndo no vento e se não foram fisgadas por um galho de árvore, devem estar chegando no topo de uma montanha e logo logo deságuam no mar.

Bons sonhos e um fim de semana iluminado por Santa Ignorância.

Inté.

domingo, agosto 05, 2007

Caixa de histórias

Foto: minha, mas é do Rolf, nosso cão amigo.

Esse é o Rolf. Hoje saímos para passear. Entramos numa rua, saímos em outra, descemos até a praça, rodamos, seguimos em frente, voltamos, entramos em outras ruas e retornamos para casa. É um bom amigo. Não foge das suas responsabilidades. Vigia a casa, brinca com os meninos, late para os passarinhos e nos faz companhia.

Enquanto caminhávamos, fui pensando como os cães aprendem rápido a fazer o que esperamos que eles façam. Nós já temos um pouco mais de dificuldade. Normalmente fazemos é o que nos dá na telha. E, ainda bem. Melhor mesmo que seja assim, embora devêssemos também assumir com mais freqüência as conseqüências de nossas escolhas. Isso é mais raro de acontecer.

Andamos mais um pouco e me lembrei de um documentário que assisti recentemente, no Canal Brasil, sobre a língua portuguesa. Era isso mesmo: Língua – Vida em Português, de Victor Lopes. Uma fotografia maravilhosa e uma edição muito cuidadosa. Vou assistir outra vez, quando der. Mas, agora, me lembrei de um jovem moçambicano que aparece no filme. Um jovem como os nossos mesmos, pois a globalização passa pela África também, embora não deixe nada por lá.

Não me lembro do nome dele, mas vejo-o claramente agora, cantando rap, andando nas ruas, olhando para o horizonte e sonhando. Esse menino, porque é só um menino mesmo, disse que gostaria de morar nos Estados Unidos, mas acho que estava zoando. Queria só uma vida melhor. Não disse isso com tristeza, não mesmo. Disse com a coragem de quem vai tentar. E eu acredito que ele conseguirá, não por conta de seus lindos olhos negros, mas porque sua história me permitiu pensar assim.

Esse menino, que queria morar nos Estados Unidos, conheceu uma menina, que também tinha a cabecinha apinhada de sonhos e um sorriso do tamanho do mundo. Os dois namoraram, claro, e ficaram, claro e, destemidos, não se preveniram, claro. Mas o menino não contou isso nem com orgulho nem com deboche nem com vergonha. Simplesmente falou e disse qualquer coisa mais ou menos assim: plantei uma semente sem ter água para regá-la. Agora tenho de assumir minha irresponsabilidade, mas será um miúdo muito bonito e tudo acabará bem.

Andei mais um pouco e me lembrei de Mia Couto e das ruas da sua Moçambique. Lembrei dos contadores de história, que ele conheceu lá na sua infância, nessas ruas povoadas de áfrica. Esses narradores de sonho contam que as histórias ficam guardadas em uma caixa muito antiga, entregue ao primeiro homem e à primeira mulher do mundo. Assim, quando terminam de contar sua história, guardam-na de volta na caixa. Ao final da narrativa, sempre repetem: ...e tu, história, tu voltas novamente para a caixa do primeiro homem. É assim que se fecha uma história. Se ela fica aberta, as pessoas que a estão ouvindo ficam doentes. Não sei bem qual enfermidade poderá contaminá-las, mas já sei que às vezes isso é bom, às vezes é muito mal.

Por isso, já quase chegando em casa, passaram como um vento pela minha cabeça, as repetidas histórias que temos ouvido ultimamente. Histórias mal contadas, histórias pela metade, que ninguém sabe onde começaram e nem porquê começaram e, menos ainda, como e se irão terminar um dia. Histórias que se embrenharam por outras histórias, misturaram seus personagens, desfizeram o fio que nos conduzia e nos deixaram perdidos no meio de palavra nenhuma. São tantas do planalto central, que mais parecem um seriado. São outras tantas de crise, se repetindo numa freqüência tão regular, que, parece, também não terão mais fim. Crise da segurança, crise das penitenciárias, crise do aquecimento global, crise do futebol, crise do apagão aéreo e, agora, já prometem, a crise da energia.

Mas continuei seguindo o meu caminho. E fui subindo a rua e pensando se não é que deixamos abertas nossas histórias e agora estamos doentes de versões mal contadas. Fui andando e pensando se não precisávamos retomá-las, uma por uma, e fechá-las, cada uma de uma vez, retornando-as para a caixa, na qual deve estar guardada nossa própria história. Pensando que se, para isso, não precisávamos terminar de contá-las. E, para chegar ao fim, se não precisávamos que seus personagens assumissem as irresponsabilidades que cometeram em cada um desses diferentes enredos.

E já quase no portão de casa, pensei de novo no jovem moçambicano. De onde será que ele tira sua coragem, se não dos sonhos que ainda é capaz de sonhar? E pensei nos zumbis de nossas histórias mal contadas, que não dormem e nem sonham mais. Nem hoje e talvez nem nunca sonharam. E de tão covardes que se tornaram, se escondem um atrás do outro, um atrás do outro, um atrás do outro, numa cadeia interminável. Sem fim, nossas histórias permanecem eternamente abertas, deixando enfermos, para todo sempre, cada um de nós.

Como viram, andei sobre um mar de pensamentos, que vieram em ondas encavaladas, que quase me jogaram no chão.

Mas agora, fechando a minha história, uma semana de mar bem manso para todos! Tomara que essas histórias mal contadas encontrem logo o seu final e possam ser fechadas para, finalmente, delas nos livrarmos.