quarta-feira, julho 25, 2007

É só um sonho

Foto: minha.

De volta. Sempre em terra firme, atravessamos as montanhas e fomos desaguar no mar. A cidade estava vazia, o mar imenso de tão grande, o céu azul purinho e o sol morno e lento. Os dias se arrastaram sem pressa e pareceram bem maiores do que de fato são. Aproveitei todos os instantes preguiçosamente. Desliguei o rádio, vi TV só de relance e nem li jornal. Andei descalça na areia, pulei ondas, mergulhei e me afastei só para ficar olhando o mar verde-esmeralda que rodeia a cidade. Bebi água de coco, provei uma caipirinha de abacaxi e temperei um badejo para cozinhar na panela de pedra com tomate, cebola, pimentão, cheiro verde e azeite até entornar. Sem coentro.

Mas, principalmente, li. Se fosse resolver uma pendência agora, diria que o livro que mais marcou a minha vida foi este: o último que devorei. Mas não digo, porque essa é uma missão quase impossível. Talvez listar os livros dos quais ainda me lembro fosse mais fácil. Porque tem isso também. Leio e fatalmente me esqueço de quase tudo, passados alguns meses. Sobram fragmentos, uma palavra, uma frase, uma idéia, uma personagem, qualquer coisa. E me aposso desses pedaços de textos como se fossem meus. Minhas lembranças literárias são como miçangas de um colar que se arrebentou e não é mais. São coisinhas que guardo numa caixa e já não pertencem mais à obra original. Por isso, ainda assim, seria difícil montar essa lista.

Mesmo do último livro que li só guardei o que me tocou, ainda que tenha sido quase tudo. Mas, de O Vendedor de Passados, do angolano José Eduardo Agualusa, guardei principalmente essa confusão: a mistura despudorada de passados que Félix Ventura remexe no seu caldeirão de memórias, só para inventar um presente aceitável para suas personagens. Resgata fatos e fotos, datas e outros registros, tudo fisgado de livros antigos, recortes de jornais, anotações, vídeos gravados de telejornais, bugigangas compradas em feiras de objetos usados e até de palavras que permanecem, como dizia o poeta, em estado de pedra dentro de algum dicionário. E desse emaranhado de histórias reais inventa uma de mentira. Dela puxa linhas bem traçadas que se encaixam como luva nos sonhos nunca sonhados de suas personagens, dando a elas um presente respeitável e digno de ser biografado. Qual história é a verdadeira agora?

Foi uma leitura muito bem ajustada ao momento. Quando troco de casa, passados uns dias, experimento sempre uma leve sensação de desprendimento, como se estivesse saindo da minha história e entrando em outra. Sou eu mesma, igual na forma e no jeito, mas estranhamente outra pessoa. Perdida em outra história que ainda está para ser inventada. A memória da primeira se mistura com o sonho da segunda e nenhuma delas é menos real do que a outra. Quando troco de casa, preciso de um tempo para me encontrar. Ou não. São elas que me encontram ou se encontram no meu corpo e me apontam o mundo das possibilidades, que às vezes esqueço que existe, perdida na rotina da cidade grande. Se não me policio, quase enlouqueço. O mar, de fato, descansa a minha cabeça, mas só em Minas, onde estão minhas raízes, a alma tem sossego.

E de Agualusa guardei ainda as palavras finais da sua personagem que, engraçadamente, se parecem muito com as do escritor moçambicano, Mia Couto, na palestra que fez, recentemente, em Belo Horizonte. Mas só percebi isso, quando voltava pra casa. Vinha distraindo o tempo na estrada e ouvindo a gravação que a Rutinha me passou com a palestra de Mia Couto. E ele fechou sua apresentação dizendo: porque não nos basta ter um sonho, queremos ser um sonho. Félix Ventura, de Agualusa, lembrando-se de Martin Luther King, cita, no desfecho da sua história, a frase do líder negro: eu tive um sonho. Mas, logo retruca. Ele deveria ter dito antes: eu fiz um sonho.

Costurando os fuxicos, é mais ou menos assim que às vezes me sinto, quando troco de casa: como se estivesse num sonho, como se fosse o próprio sonho, como se essa vida não passasse mesmo disso. Puro sonho que a gente vai inventando todo dia e depois dá de chamar de realidade.

Falando nisso, bons sonhos a todos.

Inté mais ver, um dia.

3 comentários:

Anônimo disse...

Que maravilha de crônica! Obrigada. E sugeriu alguma coisa que liguei pra te falar hoje mas ninguém atendeu: a Folha traz um psicanalista comentando a campanha "Cansei" da OAB. Ele diz que "é um muxoxo que não muda a realidade, porque os grupos que estão nele são ligados aos tucanos, que isolaram a política da sociedade, produziram essa sensação de impotência de que tudo é complexo demais para ser mudado". Quis te falar porque naquele dia no Café do Museu te disse que "é mais complexo do isso" quando você falou que o que é necessário é educação. Ô frase besta, sô. Não diz nada, não leva ninguém a lugar nenhum. Não faz um sonho. Foi um alívio ouvir esse cara dizer isso. E foi delicioso lembrar que eu sou meu sonho. Ou pelo menos que posso ser.

patricia duarte disse...

Oi Ana, que bom que você veio aqui. Que bom que esse texto te disse alguma coisa. Aposto que você vai gostar do Agualusa e do Mia Couto. Se quiser posso te emprestar o livro e te passar o aquivo com a conferência do Mia Couto. Vai gostar e concordar comigo. Estou cada vez mais desconfiada de que esse caos que estamos vivendo é resultado de uma tomada de consciência coletiva da existência da subjetividade, depois de séculos de hegemonia da objetividade científica. Da consciência de que tudo é e não é, existe e não existe. De que tudo é um sonho, não colorido, mas duramente construído, dia a dia, de um jeito e de outro.
Mais ou menos isso. bjim

Anônimo disse...

Oi Patricia,

Seja muito bem vinda de volta! E que volta, com um belo e reflexivo texto. Creio que aproveitou muito bem as férias.

Estou sempre sonhando e idealizando, mas nunca me descolando do real.

Beijos!