sábado, maio 23, 2009

Janelas abertas


Sempre prefiro janelas abertas. Se estão fechadas, quando chego em casa, abro todas elas. Prefiro ainda mais as janelas escancaradas, sugando a vida que corre lá fora e despejando-a no meio da casa. Latidos de cachorro misturados à voz rouca da cozinheira, desfiando suas histórias na beira do fogão; o ronco de um motor de carro abafando o grito dos meninos num quintal qualquer da vizinhança; e a luz entrando pela casa, mudando a cor esfumaçada do sofá, iluminando os cantos empoeirados do escritório; e o vento varrendo o corredor, espalhando mais outros sons que saem não sei de onde para se abrigarem dentro da minha casa. De um violão dedilhado que escapa de algum quarto do prédio dos fundos; de um rádio no talo anunciando mais uma desgraça no mundo; do assobio dos lixeiros subindo a rua para recolher nossas sobras desperdiçadas dentro de sacos azuis; de uma torneira aberta, deixando a água jorrar e escorrer ralo a fora; e de um choro, um consolo, um riso e o passou, passou, que alguém repete como se fosse um emplasto embebido em mel, doce, doce, encharcando de esperança a hora que vem depois de outra hora, depois de outra, depois de outra e assim um dia, outro dia e mais outro e um mês, um semestre, um ano, uma vida. Adoro janelas abertas, de par em par, bem escancaradas para deixar a vida entrar com força. Adoro.
Inté

domingo, maio 03, 2009

Que bom, que ruim!

Os pensamentos fragmentados em mil planos

Não sei se penso ou não penso. As ideias ainda estão embaralhadas e, certamente, não irão se ordenar numa escrita solitária, mas só num amplo debate que não tenho esperança que se dê tão cedo. É exagero admitir que gostei, mas é embaraçoso reconhecer que também não gostei. Concordamos todas que a Lei de Imprensa tinha um ranço de coisa velha. Seu texto refletia as preocupações do momento mesmo em que foi editada, preocupações que, em alguma dose, já foram superadas. Em outros trechos, trata de questões que já caducaram. Um exemplo, até simplório, é a multa que estabelece para quem vender ou distribuir jornais, periódicos, impressos cuja entrada no país tenha sido proibida. O dito terá de pagar 10 mil cruzeiros por exemplar apreendido. Nem sei mais quanto isso vale e nem sei se alguém sabe.

E qual o significado dessa restrição no mundo de hoje? Um mundo globalmente conectado, no qual as informações circulam em tempo real e estão acessíveis de qualquer parte do planeta? Meus filhos, por exemplo. Eles tem o hábito de ler jornais, mas não a versão em papel, que deixam para nós, viciados em café com notícia, todas as manhãs. Eles preferem a versão eletrônica, que acessam por meio dos portais da grande imprensa e sites do mundo inteiro, atualizados ao longo do dia. Azar o nosso, que temos de esperar 24 horas, se não quisermos nos dar ao trabalho de acompanhar on line todo o noticiário, como eles fazem. É claro que nada é tão simples assim. Ainda temos uma China, por exemplo, para desqualificar esse argumento. Mas não tenho dúvidas de que vivemos um outro momento e que esse tipo de restrição é de difícil compreensão para as novas gerações.

E seja como for, o fato é que se existe um consenso, é o de que essa lei não dava mais conta da nossa realidade, que ficou ainda muito maior, e precisava mesmo ser revogada. O que me incomoda, portanto, não é a sua revogação, mas a forma como foi tornada letra morta e, com igual incômodo, a meia verdade que essa notícia enseja. Amanhecemos sendo convencidos de que agora sim, agora sim, temos plena liberdade de imprensa. Como se não houvessem outras leis, hoje muito mais fortes, exercendo o controle da informação nos meios de comunicação. Que eu saiba, as leis de mercado, essas sim, hoje poderosas, continuam em pleno vigor. Ou não? Sei que não é tão simples assim detectar a influência do poder econômico no processo de edição de um jornal, mas seria ingenuidade acreditar que não exista. Da mesma forma, o poder político também abre suas asas sobre as informações que circulam na mídia. Se é legítimo ou não, é outra discussão, mas que existe uma guerra surda nas redações quando determinados assuntos entram em pauta, não tenham dúvida.

E agora? Revogada a lei, sem um amplo debate que antecedesse essa decisão e permitisse a formulação coletiva de um novo texto para apreciação do Parlamento, caímos num vácuo legal, onde tudo é permitido. Na prática, pode até não ser assim, mas, em tese, é. Ainda que uma Folha de S. Paulo anuncie uma nova reforma editorial, prometendo mundos e fundos, será que a autoregulamentação alcança toda a complexidade que esse assunto abrange? E agora? - de novo. Agora, dizem, caberá ao Parlamento discutir o texto de uma nova lei, que virá definir os novos parâmetros para a atividade jornalística. Mas qual Parlamento? Esse mesmo que aí está. Esse mesmo, que tem sido incansavelmente bombardeado por essa mesma mídia que aí está. Não vou entrar no mérito das críticas que viram manchete de jornais todos os dias, algumas muito justas, outras nem tanto. Algumas saídas de nem sei onde, outras fruto do trabalho investigativo de jornalistas responsáveis. Aqui não vem ao caso. O fato é que, depois desse bombardeio, teremos um Parlamento em forma para conduzir essa discussão? Não sei.

E, claro, isso é preocupante. Um Parlamento enfraquecido poderá enfrentar o poder de uma mídia que, agora, atua sem nenhum limite? E será que essa mídia que aí está, não tem também, lá no fundo, bem no fundo mesmo, uma pontinha de pretensão de vir a substituir esse Parlamento enfraquecido na representação dos interesses da sociedade e na fiscalização do Poder Público? E será que essa mídia é mais competente para representar a pluralidade de interesses que permeia a nossa sociedade, mais do que um Parlamento, ainda que com toda a precariedade que o nosso ainda sofre? Também não sei, mas, na dúvida, prefiro o Parlamento, que pode ser renovado a cada quatro anos.

Eu avisei: minhas ideias ainda estão embaralhadas e viraram uma grande salada, mas é mais ou menos por aí que vou continuar pensando. E tomara que esse debate, que não tenho esperança de tão cedo poder acompanhar, aconteça bem antes do que o meu pessimismo tem permitido.

Inté.
Foto: minha. De uma exposição no Palácio das Artes.